Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Conheça artista trans que se inspira em sexo pago para pintar e combater racismo

Lia D Castro retrata seus clientes heterossexuais brancos como modelos em telas que nascem de programas

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A artista plástica Lia D Castro durante visita guiada à exposição "A Cumplicidade Refletida" na galeria Jaqueline Martins, em São Paulo Eliane Trindade/Folhapress

São Paulo

O lençol ainda amassado pelos movimentos dos corpos recém-saciados vira suporte da tela intitulada "Colo de Mãe/Resíduo da Noite Anterior", em que Lia D Castro divide a cena com um jovem branco retratado nu, deitado de costas no sofá da sala do apartamento da pintora em São Paulo, em espécie de "Pietà" trans.

O quadro faz parte da série "Seus Filhos também Praticam" que integra a mostra "A Cumplicidade Refletida", em exibição na galeria Jaqueline Martins, em São Paulo, até sábado (18).

Quem assina a obra é Lia, de 44 anos, uma mulher trans negra, profissional do sexo e educadora antirracista, que usa a prostituição como fonte de renda e instrumento de pesquisa.

A artista plástica Lia D Castro diante da tela Colo de Mãe/Resíduo da Noite Anterior, na qual retratou um jovem branco hétero sobre lençol usado sobre o qual mantiveram relações sexuais - Eliane Trindade/Folhapress

Os quadros incorporam preservativos, esparadrapo e polaroides dos corpos de clientes e amantes.

"Bruno é um menino branco, pobre e rapper. Saímos há uns três anos", explica, diante do quadro pintado sobre um lençol estampado, que extravasa a tela e cai até o chão.

A ideia de usar o suporte inusitado foi dele. "A gente tinha acabado de transar quando ele perguntou: ‘Bia, não tem como você pintar em cima desse lençol?’", relata ela, tratada pelo diminutivo de Bianca, nome de guerra na noite.

Assim nascia mais uma das 300 obras criadas por Lia no apartamento-ateliê do Parque São Domingos, zona norte de SP, onde há sete anos ela recebe clientes, em sua maioria homens brancos, de classe média alta e heterossexuais, na faixa de 18 a 25 anos.

Eu uso a prostituição como instrumento de aproximação para dialogar e pesquisar sobre a branquitude

Lia D Castro

artista plástica

"Eu uso a prostituição como instrumento de aproximação para dialogar e pesquisar sobre a branquitude", diz a artista, que tem sangue negro, indígena e branco. "É também fonte de renda. Tenho o dever moral de dizer."

A pesquisa de campo abrange um universo de 50 homens, entre os 700 clientes que Lia calcula ter recebido desde 2015 quando tomou a decisão de se prostituir.

"A partir do momento que eles voltam duas, três vezes, eu proponho que em vez de me pagarem em dinheiro, me paguem com informação."

Aqueles que aceitam são convidados a escolher um livro entre os 500 títulos da biblioteca da dona da casa, repleta de autores negros.

Lia tem como livro de cabeceira "O Caminho de Casa", de Yaa Gyasi, destaque na cena literária norte-americana com narrativa que vai de uma tribo africana aos Estados Unidos para mostrar as consequências do comércio de escravos nos dois lados do Atlântico.

Entre as obras ofertadas para leitura conjunta com os clientes e objetos de estudo está "Ignorância Branca", de Charles S. Mills, inspiração para o quadro "Daltonismo", um nu com uma mescla de tons.

"Quero entender esse processo de embranquecimento que leva ao racismo", explica Lia, em busca de respostas para questões sobre o que é ser uma pessoa branca em um Brasil racista.

"É muito tocante no trabalho da Lia essa capacidade de transformar todas as pautas em recursos e capital intelectual e artístico", afirma a galerista Jaqueline Martins. "Ela cava assim seu lugar no mundo e não se deixar definir pela pobreza nem pela prostituição."

A dona da galeria foi apresentada à artista plástica desconhecida por Digg Franco, um dos fundadores da Casa Chama, de apoio à comunidade trans. "Lia é uma referência genial, combinação de talento e sabedoria", diz ele.

Uma pintura dela enfeita uma das paredes da ONG, retratando uma mulher trans nua e de pernas abertas. Para Franco, é uma espécie de "Origem do Mundo" travesti, remetendo ao clássico nu feminino que é ícone na história da arte.

A transfobia aparece na série "Atravessando o Rubicão", com pinturas no tamanho de 20 x 30, alusão simbólica à faixa etária de travestis vítimas de violência no Brasil.

"Não estão morrendo de fome ou de soropositividade, mas são vítimas de crime de ódio. Não com uma facada, mas com 500."

Lia D Castro cava seu lugar no mundo e não se deixar definir pela pobreza nem pela prostituição

Jaqueline Martins

galerista

As pequenas telas também fazem referência ao processo de transição da artista, período de transformações, dores e solidão. "Durante dois anos, fui violentada por um cara que achava que era meu dono. Nessa época, descobri que sou soropositiva."

Na própria travessia, Lia pintou sobre bulas de remédios e hormônios. Em um autorretrato nua, com os braços amarrados e a cabeça coberta por esparadrapos, inscreveu na tela minúscula: "Quer saber quem sou vista minha pele".

Ela não contou com suporte de familiares. "Quando começa a terapia hormonal e se coloca silicone, a família não aguenta", diz. Ela não tem contato com os pais há dez anos.

Lia, porém, criou uma família para si e adotou um jovem, hoje com 30 anos. "Chegou um momento que queria amar e ser amada por alguém. Foi quando falei para meu filho, um homem branco gay: ‘Você quer ser cuidado por uma travesti preta?."

Ela foi criada de fazenda em fazenda. De Mirandópolis (SP), onde nasceu, a Aquidauana (MT), território pouco acolhedor para questões de identidade de gênero. "Eu era chamada de ‘mariquinha’, ‘mulherzinha’. Era misoginia, mas eu não entendia o porquê de me xingarem, quando me sentia mulher."

Quando terminava a lida na roça e de estudo, ia desenhar. "Fui experimentando o que tinha. Varria o chão e desenhava. Pegava pedaço de carvão do churrasco para pintar nas paredes."

Lia saiu de casa com 20 anos. Mudou para Presidente Prudente, interior de SP, onde virou vendedora de loja e namorava um policial, primeira pessoa a lhe dizer que era uma artista.

Aos 30 anos, já em São Paulo, decidiu fazer faculdade de artes. Matriculou-se na Ítalo-Brasileira, a mais barata que achou, onde se deparou com o que chama de processo de embranquecimento intelectual.

Além dos clientes brancos, Lia também retrata amantes negros na série "Aos Nossos Filhos", em pinturas assinadas por Davi, Brian, Marcelo. "Não tem só o corpo de um homem negro fetichizado. Está ali também a assinatura e o DNA deles. Como parte da pintura, eu pego o esperma de cada um e passo na tela."

O processo com brancos e negros envolve sexo, diálogo, leitura, fotografia, pintura e o retorno dos modelos para assinatura na tela.

Em uma série de trípticos foram enquadrados um preservativo, a imagem do livro escolhido e uma polaroide de parte do corpo do retratado, tudo colhido após o sexo.

Quadros que continuarão expostos a partir de 15 de abril, desta vez em Bruxelas, onde Jaqueline Martins mantém uma segunda galeria.

Lia também atua como educadora e consultora sobre combate e prevenção a racismo e transfobia no mercado de trabalho.

"Quero ganhar o mundo e manter viva o máximo que eu puder", diz, enquanto busca uma residência artística em Paris com a credencial de um trabalho que provoca reflexões para além da arte.

"O amor é uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança", escreve Lia, ao retratar um dos amantes, uma citação emprestada de bell hooks, teórica feminista, artista e ativista antirracista estadunidense.

"Talvez todos os trabalhos de Lia D Castro sejam ancorados no amor. Não o amor burguês, que muitas vezes se confunde com exploração de gênero, mas aquele definido por bell hooks como 'espaço de despertar crítico e de dor'", diz a curadora Mariana Leme.

A Cumplicidade Refletida

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