Reinaldo Azevedo

Jornalista, autor de “Máximas de um País Mínimo”

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Reinaldo Azevedo

O Brasil que sabe a escalação do STF, mas não a da seleção, é só um país de patos infelizes

Os brasileiros resistem a se apegar a uma das melhores equipes da história

Infeliz o país em que boa parte dos cidadãos sabe o nome de todos os membros da corte suprema, mas ignora a escalação da seleção. Partida em que o juiz é a personagem principal é ruim. Se isso acontece, ou aquele que encarna a neutralidade sem paixão e detém o monopólio da aplicação das regras, com as consequentes sanções, está se arvorando em protagonista do espetáculo —e, portanto, faltando a seu mister—, ou os atletas se descuidam de sua tarefa, substituindo a bola pelo corpo do adversário.

Se magistrado aparece mais do que político ou jogador de futebol, é sinal de que o jogo da institucionalidade é pífio e tende a acabar mal.

Recebi dia desses um meme que trazia ao fundo a imagem do pleno do Supremo e o seguinte texto: “É melhor saber a escalação do STF do que a da seleção”. O espírito que motivou a afirmação ganhou sua tradução em números logo depois, em pesquisa Datafolha. Boa parte dos brasucas não está nem aí para a Copa do Mundo: 53% —48% dos homens e 61% das mulheres. Apenas 24% da rapaziada diz ter “muito interesse” pela competição; entre as moças, só 14%.

Uma amiga desenvolveu uma tese, ironicamente mística, segundo a qual a derrota da seleção brasileira para a da Alemanha por 7 a 1, em 2014, abriu uma espécie de Portal dos Desastres para o país. Usei a ideia no conto que escrevi sobre a Copa de 2010, a pedido do UOL.

Convenham: os quatro anos seguintes foram, estão sendo, de amargar. Há no período o trauma necessário do impeachment. Trauma, sim! Necessário também! Afinal, Dilma Rousseff já havia feito o suficiente para que se possa sustentar que só o abismo nos espreitava. Mas o custo político foi imenso. Quem sabe o tal portal se feche com uma disputa final entre Brasil e Alemanha, com a vitória do outrora chamado “Selecionado Canarinho”. O placar pode ser mais magro. Por qualquer 1 a 0, decreto o fim da urucubaca!

A memória da tragédia em solo pátrio não colabora para despertar a atenção dos brasileiros para a Copa. Mas é evidente que o desinteresse pela competição tem pouca relação com o futebol. É um truísmo o que vai, mas necessário: ganhar e perder fazem parte do jogo. Uma derrota como aquela poderia despertar, agora, sonhos de redenção. Em vez disso, o que se nota é um misto de rancor e melancolia em relação a quase tudo. Parece que o país está condenado a ser triste por um bom tempo.

Por que haveria de ser diferente? Os jogadores do STF surgem na ponta da língua de parte considerável da população por maus motivos —até porque não estão a ser exaltados, mas espezinhados.

Os brasileiros resistem a se apegar a uma das melhores equipes da história porque também a seleção encarna a ideia da representação. E o Brasil vive, infelizmente, sob o império de um ente de razão, de uma abstração com poder de polícia também política, a nos dizer que todos os nossos representantes, sem exceção, são trapaceiros.

Um país que passa a acreditar apenas em culpa, nunca em inocência, está condenado ao desastre. Nesse ambiente, as garantias legais são tidas como elementos procrastinadores da Justiça. As defesas dos indivíduos contra a força coativa do Estado, base de qualquer regime democrático, se dissolvem na paixão justiceira. Do habeas corpus à presunção de inocência, tudo se rende no altar do combate à corrupção, real ou suposta. Nosso gol é prender pessoas. Nosso talento é punir.

A esquerda d’antanho gostava da tese mixuruca de que o futebol é que era o ópio do povo. A disputa nos distrairia de nossos reais problemas e serviria à manipulação ideológica —o futebol e também as... revistas em quadrinhos! Procurem saber o que é um livro hediondo, literalmente do século passado, chamado “Para Ler o Pato Donald”. Aqueles conceitos tortos, essencialmente errados, do que seriam “alienação” e “consciência” estão aí, vulgarizados até em memes, mas, desta feita, pela direita xucra.

O Brasil que sabe a escalação do Supremo, mas não a da seleção, é só um país infeliz, de patos com complexo de rottweilers nada amorosos.

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