Reinaldo Azevedo

Jornalista, autor de “Máximas de um País Mínimo”

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Reinaldo Azevedo
Descrição de chapéu desigualdade de gênero

A igualdade salarial. Ou: 'Eu também já fui brasileiro como vocês'

Bolsonaro devastou a direita democrática em razão da vizinhança de ideias

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Não mexa que estraga. A emenda sempre fica pior do que o soneto. Quando governos se metem a corrigir desigualdades, mais atrapalham do que ajudam. Tentando proteger os vulneráveis, vão marginalizá-los ainda mais.

Ao tomar conhecimento do conjunto de medidas anunciadas por Lula de proteção às mulheres, lembrei-me dessas considerações que se ouvem por aí, muito especialmente em ambientes em que se respira o ar do "liberalismo à brasileira". Não raro, este convive bem com desigualdades alarmantes e as transforma em fatos caídos da árvore da vida. Os missionários querem menos Estado também na assistência social, não só na economia. Não é maldade, é crença.

O presidente Lula, em cerimônia de celebração do Dia Internacional da Mulher e de anúncio de conjunto de ações na quarta-feira (8) - Gabriela Biló/Folhapress

Aguardo a reação desses fiéis ao pacote pró-mulheres. Não sei quantos entes abstratos, que habitam o "mundo como ideia", serão convocados para evidenciar que tudo vai dar errado porque verdades eternas da economia estariam sendo afrontadas. As mesmas evocadas, e as tenho vivas na memória, contra o SUS no século passado.

Lembro um poema de Carlos Drummond de Andrade. "Eu também já fui brasileiro como vocês" —no caso, os entusiastas do "liberalismo nada moreno". Faço aqui alusão espelhada ao "socialismo moreno", de que Leonel Brizola se tornou a expressão eleitoral, no esforço para adaptar certas ideias gerais sobre o bem e o justo às circunstâncias de cada país. Noto à margem: não procedo a um juízo de valor sobre aquelas escolhas políticas.

Se o "socialismo" —e tomo o vocábulo como emblema das várias correntes igualitaristas— se amansou no Brasil, substituindo, como vertente triunfante, a disrupção pela reforma, amalgamando-se ao que fizemos do que fizeram de nós, parece-me certo que aquilo a que chamam "liberalismo" andou em sentido contrário, não recusando, e buscando-a às vezes, proximidade com o reacionarismo mais abjeto. Na simbologia aqui empregada, foi se tornando mais branco e menos brando.

Jair Bolsonaro não devastou a direita democrática por acaso. Isso não se deveu apenas à sua truculência, mas também à vizinhança de certas ideias. E, por isso mesmo, tudo o mais constante, vai demorar muito tempo até que os ditos "conservadores" não bolsonaristas e não petistas tenham uma voz reconhecível. Deveriam ler Paulo: a cítara e a flauta hão de soar de modo distinto. Se o som for incerto, quem vai se organizar para a batalha?

Volto a Drummond, adaptando-o. "Eu também já fui poeta./ Bastava olhar para o mercado,/ pensava logo nas estrelas/ e outros substantivos celestes/ Mas eram tantas, o céu tamanho,/ minha poesia perturbou-se. (...) E meus amigos me queriam,/ meus inimigos me odiavam./ Eu irônico deslizava/ satisfeito de ter meu ritmo."

Sei fazer todos os panegíricos em favor do mercado. Mas, na democracia, ou ele é regulado pela política —em vez de controlá-las—, ou viveremos de lamentar, a cada pouco, que muitos sejam colhidos por tragédias. Ou, sem estas, que morram aos suspiros. A igualdade salarial encontrará enormes resistências. Todas as frases que abrem este texto serão tonitruadas. E se vai alertar, adicionalmente, para o desemprego das mulheres, que o projeto de lei busca proteger.

Os detratores, havendo quem perca seu tempo com isso, podem usar contra mim aquele Drummond, que termina assim: "Mas acabei confundindo tudo./ Hoje não deslizo mais não,/ não sou irônico mais não,/não tenho ritmo mais não." Não sinto nenhuma saudade de um tempo de muitas certezas e pouca perplexidade. Paulo de novo: há a hora de deixar de ser menino. Sabemos quão entediante é o entusiasmo de um viajante neófito com paisagens das quais já nos fartamos.

Temos convivido mal com a ideia de que as pessoas podem não ser assim tão virtuosas, mas que temos de lutar por instituições que o sejam, como me disse a ministra Marina Silva (Meio Ambiente) em entrevista recente. Não ignoro que elas nascem de consensos possíveis, mas defendo que também contribuem para criá-los. Se um conservador não busca aprimorar instituições para conservá-las (Chesterton), lutará pela conservação de quê? De iniquidades? Lula, por isso mesmo, é nosso mais notável conservador. E isso aqueles "liberais" a que me refiro ainda não entenderam. Talvez não entendam nunca.

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