Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Criacionismo para ateus

Crer que comportamento humano é 'construção social' é tão irracional quanto acreditar em fadas

"A Criação de Adão", por Michelângelo Reprodução

Os pontos mais extremos do espectro político e ideológico têm a desagradável tendência de se encontrar, morrendo juntinhos n'um abraço de afogados --se não pelo conteúdo exato do que defendem, ao menos pelo teor estapafúrdio de seus credos.

Cristãos conservadores adeptos do literalismo bíblico (a crença de que cada sílaba da Bíblia é literalmente verdade, em todos os aspectos), por exemplo, acreditam que o ser humano surgiu há poucos milhares de anos, plasmado pela ação direta de Deus, sem qualquer relação com as demais formas de vida, único ocupante do trono da Criação (logo abaixo do Senhor, é claro). Para simplificar, chamemos essa crença de "criacionismo da Terra jovem" (já que seus adeptos tampouco aceitam os 4,5 bilhões de anos da idade real do nosso planeta). 

Absurdo, dirá o leitor. E, no entanto, talvez mordidos por algum tipo de inveja freudiana de seus oponentes da extrema direita, ateus da esquerda radical frequentemente aderem a uma concepção ideológica que, apesar das diferenças superficiais, funcionalmente diz a mesma coisa que o literalismo bíblico. "Tudo no ser humano é construção social", pregam eles. "Não existe natureza humana. Somos infinitamente maleáveis." Que me desculpe a massa de crentes de ambos os lados, mas isso não passa de criacionismo para ateus.

Convém explicar um pouco melhor onde vejo esses dois extremismos se encontrando. Numa palavra (OK, em duas): excepcionalismo humano. Ou seja, a fé segundo a qual o Homo sapiens corresponde a tamanha exceção entre os demais seres vivos que não faria sentido aplicar as mesmas regras que valem para o resto da Árvore da Vida.

Para os criacionistas "de raiz", os da Terra jovem, é por decreto divino que somos esse ser fora de série; para os neocriacionistas ateus, a invenção da cultura humana nos permitiu um ecossistema simbólico de nossa própria lavra, liberto das amarras da biologia. Bastaria apertar os botões certos na hora de configurar nossas estruturas sociais, políticas e econômicas e pronto: felicidade perpétua para nossos semelhantes.

Infelizmente, acreditar nisso faz tanto sentido, do ponto de vista empírico, quanto achar que o Senhor Deus realmente moldou a anatomia adâmica com argila lá pelo ano 4.000 a.C. Nunca é demais lembrar que os mesmos ansiolíticos e antidepressivos capazes de aliviar os males do coração humano funcionam em roedores ou invertebrados; que líderes chimpanzés são capazes de manobras de fazer inveja ao MDB e a Maquiavel; e que aspectos de transmissão cultural estão presentes em espécies de primatas, cetáceos e corvídeos, entre outras criaturas.

Eu poderia passar os próximos séculos citando exemplos aqui, mas a mensagem geral é clara: o excepcionalismo não fica menos absurdo quando ganha versão laica. Ignorar a natureza humana como o fato de que crimes violentos quase sempre são cometidos por homens jovens, independentemente da cultura, por exemplo, como já escrevi neste espaço --pode levar a pontos cegos trágicos quando se tenta enfrentar problemas sociais, um objetivo louvável que não deveria ser exclusividade de nenhuma orientação política. Somos escravos de nossa natureza biológica? Não, lógico. Mas achar que ela pode ser ignorada, em nome de Deus ou da utopia política, é uma ilusão perigosa.

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