Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
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Achar que vida sem Estado seria uma boa é ignorar sanguinolência da natureza humana

Organização estatal é o mal mais necessário do mundo para a nossa própria segurança

Tem gente que acredita no coelhinho da Páscoa. Tem gente que acredita na Santíssima Trindade (feito eu). E tem gente doida o suficiente para achar que a nossa vida seria muito melhor se não existisse Estado.

Cena da série "The Walking Dead", 7ª temporada
Cena da série "The Walking Dead", 7ª temporada - Gene Page/AMC

Ocorre que só a mais completa ignorância dos fatos é capaz de produzir uma crença tão ingênua quanto a da utopia anti-Estado. Se existe alguma coisa que o estudo da evolução das sociedades humanas demonstrou cabalmente, é o fato de que a organização estatal é o mal mais necessário do mundo.

Milhares de esqueletos escavados em sítios arqueológicos, levantamentos etnográficos e muitos outros dados indicam que a vida sem o controle do Estado não é um idílio pastoril como o dos hobbits do Condado em “O Senhor dos Anéis”, mas está mais para a bagunça sanguinolenta de “The Walking Dead”.

Mas e a Alemanha nazista? E a União Soviética de Stálin? Afinal de contas, os piores genocídios da história em números absolutos foram conduzidos por Estados todo-poderosos, certo? De fato. Calcula-se que até 200 milhões de pessoas tenham sofrido mortes violentas no século 20, ou até 2% da população que viveu naquela época.

Porém, e esse é o porém crucial, em sociedades sem Estado, a proporção média de gente que morre em guerras ou assassinada fica entre 10% e 20%. Pois é, entre cinco e dez vezes mais alta que a do matadouro do século 20. A taxa de homicídios entre os inuítes (ou esquimós), por exemplo, costumava ser mais que o triplo da brasileira do ano passado, e os números entre outros grupos de caçadores-coletores não são muito melhores. Bom selvagem é a vovozinha, amigo.

Na Europa, onde temos dados mais confiáveis a partir do fim da Idade Média, uma tendência fica clara. Começando com taxas de homicídio similar à dos caçadores-coletores lá pelo ano 1300, a coisa começa a ficar menos sangrenta conforme Estados mais fortes se consolidam no continente (é aquele negócio chamado absolutismo que você aprendeu nas aulas de história). A queda mais abrupta nos índices de assassinato se dá nos séculos 16 e 17, com a imposição da autoridade estatal monárquica.

Não é difícil entender o que aconteceu – é natureza humana básica, moldada pela seleção natural, operando. Sem a supervisão do Estado, predomina o tribalismo. Só há motivos para confiar na sua família e nos habitantes do seu vilarejo, os sujeitos com quem você interage cara a cara e que têm boas razões para ser legais com você.

Fora dessa esfera imediata, é muito difícil criar redes de confiança, já que não há ninguém para punir quem cair na tentação de tirar os bens ou a vida de um desconhecido. A autoridade estatal diminui muito as oportunidades para esses inúmeros conflitos de pequena escala. Guerras entre Estados podem levar à grande perda de vidas no atacado, mas a mera existência deles salvou muito mais vidas no varejo.

Ninguém aqui está dizendo que bom mesmo é um Estado gigante, daqueles que monopolizam até a fabricação de pirulito. Iniciativa privada também faz muita coisa boa, óbvio. As sociedades mais prósperas e justas do mundo claramente têm tanto setores privados fortes quanto Estado fortes.

Entretanto, isso não apaga o fato inescapável de que a natureza humana tende a fazer caca com a ausência de controle. Anarquistas do mundo todo (inclusive os anarcocapitalistas), aposentai-vos, por gentileza. 

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