O que fazer quando alguém que você conhece e respeita pede sua ajuda para transmitir a um público amplo uma mensagem que, ao menos do seu ponto de vista, é insensatez pura? Bom, acabei fazendo duas coisas: 1) fiel ao sacrossanto princípio da liberdade de expressão, ajudei-o a publicar um artigo nesta Folha; 2)avisei que faria o possível para demonstrar a despropósito de suas ideias. Nesta coluna, tento cumprir o prometido.
Estou falando do texto do paleontólogo Max Cardoso Langer, da USP de Ribeirão Preto, publicado em 28/7 no caderno Ilustríssima. Conversamos com alguma frequência desde a década passada, por causa de meu vivo interesse, como jornalista de ciência, pelas suas pesquisas com os mais antigos dinossauros brasileiros. Sempre foi um prazer falar com ele —o que aumentou o baque diante do conteúdo de seu artigo.
Em suma, Langer diz que é uma besteira a preocupação com a atual onda de extinções de animais e plantas provocada pelo ser humano. Coisas assim aconteceram o tempo todo ao longo da história geológica da Terra, argumenta. São eventos naturais e esperados, e nós, como modestos primatas bípedes africanos, somos igualmente parte da “natureza”.
Ele vai além: a mania de querer evitar extinções é ingênua, provocada pela crença em um equilíbrio natural que nunca existiu, e pode ser até danosa —afinal, se tentarmos congelar os ambientes da Terra em seu estado atual, poderemos muito bem impedir o surgimento de novas e maravilhosas espécies no futuro distante. Pare de se preocupar e aproveite a vida, Homo sapiens.
Ele que me perdoe, mas o raciocínio tem mais buracos factuais que um queijo suíço —além de problemas filosóficos que fariam Kant ter uma síncope.
Começando pelos fatos, Langer deveria saber que nunca uma espécie de vertebrado de grande porte chegou a ter bilhões de membros vivendo ao mesmo tempo no planeta. Antes de nós, não houve jamais um vertebrado que domesticasse outros vertebrados (bois, ovelhas, cabras etc.) e os transformasse nos animais dominantes dos ecossistemas terrestres (depois dele mesmo, é claro), com populações igualmente na casa dos bilhões.
Do mesmo modo, nunca tinha existido uma espécie de animal capaz de alterar sozinha, de modo significativo e em escala de décadas, a química da atmosfera, dos oceanos e do solo. Ou de se apropriar de um quarto ou mais da produtividade primária da biosfera —ou seja, tudo o que as plantas produzem com a ajuda da luz do Sol.
Sério que, se essas tendências continuarem, com o Homo sapiens bancando o fominha, vão sobrar recursos para um futuro florescimento da biodiversidade? Cê jura?
Acho os problemas filosóficos ainda mais graves. Com seu cientismo —a visão estreita segundo a qual só os fatos científicos importam—, o paleontólogo dá combustível aos desinformados que acham que a ciência destrói as noções humanas naturais de certo e errado.
Em suas considerações não aparece em momento algum a questão crucial: nós temos consciência da bagunça que causamos (ao contrário do meteoro que acabou com os dinossauros). Sabendo disso, é moralmente correto passarmos feito um trator por cima de todas as demais formas de vida da Terra?
A resposta de Langer talvez seja a de que o Cosmos é amoral por definição. Pode ser —embora isso seja um pressuposto filosófico que o sujeito escolhe, não um fato demonstrável. Mas seres humanos continuam sendo seres morais. Quando não se fazem esse tipo de pergunta, correm o risco de deixar sua humanidade para trás.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.