Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Tendência a desumanizar inimigos é da natureza humana, mas tem solução

Atitude natural (mas não a correta) é que os grupos fortaleçam a coesão interna e a inimizade com quem é fora

​Diante do ataque brutal e inaceitável a um candidato à Presidência da República, minha cabeça de jornalista tem dificuldade de pensar em qualquer outra coisa neste momento. Por enquanto, tudo indica que o ato foi mais resultado de desequilíbrio mental do que de qualquer outra coisa, mas é inegável que o clima de ódio político que tomou conta do país nos últimos anos andou chocando ovos da serpente como esse. E o mecanismo por trás do horror tem nome: pseudoespeciação.

Sou capaz de apostar que você já o viu em operação repetidas vezes por aí, inclusive em memes e tiradas engraçadinhas, ainda que não soubesse que o termo técnico que o descreve era esse. Toda vez que alguém diz, ainda que de brincadeira, coisas como “liberal nem é gente” ou “comunista tem de fuzilar mesmo”, quando compara grupos étnicos a bichos (e a gente sabe como isso ainda é tristemente comum em campos de futebol mundo afora), está afirmando, de um jeito direto ou velado, que aquele outro sujeito não pertence à mesma espécie que ele.

Daí a origem do termo — uma falsa especiação, ou seja, a separação de grupos em espécies diferentes. (A especiação verdadeira, e moralmente neutra, óbvio, aconteceu quando o ancestral comum de chimpanzés e humanos deu origem a duas linhagens diferentes há uns 7 milhões de anos, por exemplo. É assim que novas espécies nascem.)

Os estudos de psicologia social mostram que se trata de um fenômeno que acontece o tempo todo e é tremendamente antigo — talvez mais antigo que a própria humanidade. Uma pesquisa feita com macacos, por exemplo, revelou que os bichos tendem a ligar mentalmente membros de outros grupos com aranhas (que eles temem e detestam, como acontece com muitos humanos), enquanto associam indivíduos de seu próprio grupo a coisas positivas, como frutas saborosas.   

Há uma lógica horrenda, mas difícil de refutar, nisso tudo. Mamíferos sociais como nós dependem profundamente dos membros de seu grupo para sobreviver e se reproduzir; ao mesmo tempo, competem com outros grupos da mesma espécie por alimento, espaço e parceiros. Tudo isso num contexto em que não há autoridade superior para moderar conflitos de interesse — lembre-se de que Estados, tribunais e polícia são invenções recentíssimas, com no máximo poucos milhares de anos, enquanto Homo sapiens talvez tenha 300 mil anos de existência.

Ora, as circunstâncias citadas acima fazem com que a atitude “natural” (não a correta, veja bem, mas a que foi moldada pelo processo evolutivo) é que os grupos cerrem fileiras, fortalecendo, ao mesmo tempo, a coesão interna e a inimizade com quem fica de fora. Não é por acaso que costuma haver um abismo entre as etimologias dos nomes que um grupo dá a si mesmo e os que seus vizinhos ou inimigos lhe dão.

Exemplo brasileiro claríssimo: os indígenas que conhecemos como caiapós ganharam o nome de gente que os considerava “semelhantes a macacos” (esse é o significado da palavra), enquanto se autodenominam “mebêngokrê”, “homens do lugar d’água”.

Tem antídoto contra isso? Tem — mas ele é de ação lenta e delicada. Os últimos séculos presenciaram uma expansão do chamado “círculo de preocupação” com outros seres humanos, que começa com pensadores e ativistas e, por meio da educação e das leis, e até da ficção literária, chega à população em geral. A ideia de direitos humanos universais foi fundamental nesse processo. Mais do que nunca, é hora de deixar claro que todo mundo, sem exceção, é gente. 

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