Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Itamaraty ignora que fronteira imprecisa entre sexo e gênero também é biológica

Convém que a diplomacia brasileira leve em conta toda a complexidade biológica da sexualidade, não só o que os bolsonaristas querem ouvir

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Fiquei tentado a começar esta coluna dizendo que, de modo geral, concordo com a nova orientação do Ministério das Relações Exteriores tupiniquim acerca de debates envolvendo sexo e gênero. Segundo noticiou esta Folha há poucos dias, o Itamaraty agora defenderá, em debates internacionais, que “a palavra gênero significa o sexo biológico”.

Beleza. No entanto, e aqui vejo-me forçado a usar linguagem algo infantil na esperança de que ela alcance as limitações do público-alvo, sexo biológico está longe, muito longe de ser apenas pipi e periquita. (Mesmo nesse ponto as coisas são bem mais complicadas do que nosso bravo chanceler Ernesto Araújo gostaria de imaginar). Em bichos de desenvolvimento e comportamento complexo feito nós, o cérebro é igualmente um órgão sexual. E o cérebro —biológico, volto a frisar— serve pra produzir o quê, entre outras coisas?

Pois é. Cultura, aquele negócio que supostamente não tem nada a ver com o comportamento sexual/de gênero entre seres humanos.

Mas vamos por partes. O atual comando itamarateca bem que poderia usar sua representação na República Dominicana, por exemplo, para conhecer o curioso caso dos “güevedoces” (algo como “testículos aos doze”), que correspondem a cerca de 1% das pessoas nascidas na localidade de Las Salinas.

Os “​güevedoces”, ao nascer, têm genitália feminina e são (lógico, diria nosso chanceler!) vestidos e tratados como meninas por seus pais. Mas, quando a puberdade chega, em vez de menstruar, o que parecia ser um clitóris vira um pênis, seus testículos aparecem, e não é raro que eles se casem e gerem seus próprios filhos com mulheres “de verdade”.

A causa da anatomia peculiar desses indivíduos é uma mutação que impede a produção de enzima 5-alfa-reductase, molécula sem a qual o organismo não processa direito o hormônio masculino testosterona durante o desenvolvimento do feto. (A puberdade, com seu aumento dos níveis de testosterona, acaba compensando esse efeito.)

Vale frisar que o caso dominicano está longe de ser o único. Existe uma enorme variedade de alterações de origem genética ou hormonal que acabam por produzir seres humanos com anatomia genital e/ou biologia reprodutiva ambíguas. E não adianta dizer “ah, mas se os cromossomos são XX é menina, se são XY é menino, pronto e acabou” porque 1) existem pessoas que são XXY ou possuem misturas de células com ambos os padrões e 2) o impacto desse “sexo genético” no comportamento da pessoa real não é simples, linear ou previsível.

Variações genéticas e hormonais são importantes não apenas por influenciarem a existência, o formato e o tamanho de pipis e periquitas, mas porque têm um impacto sobre a estrutura do cérebro – inclusive nas diferenças sutis, porém importantes, de inclinações e comportamento entre os sexos.

E aqui é que a bola realmente passa no meio das pernas do Itamaraty bolsonarista: os cérebros de pessoas que se classificam como transexuais são, em média, mais similares aos de pessoas do sexo à qual elas sentem pertencer —e não aos do sexo “de nascimento”. Mesmo que esteja tudo “normal” do ponto de vista anatômico.

Portanto, se a diplomacia brasileira está querendo discutir biologia, convém que ela leve em conta toda a complexidade biológica da sexualidade, e não só o que os bolsonaristas querem ouvir. A saúde e a vida decente de muitas pessoas mundo afora estão em jogo.

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