Dizem as más línguas que o partido Novo nada mais é que o bolsonarismo que calça sapatênis e aprendeu a substituir as mãos sujas por garfo e faca à mesa. Verdade ou não, o fato é que certos representantes da agremiação têm copiado o que há de pior no negacionismo científico do atual presidente. Diante de uma crise que só pode ser enfrentada gerando o máximo possível de conhecimento confiável em tempo real, “novistas” como o governador de Minas Gerais resolveram optar pela ignorância.
Com efeito, Romeu Zema tem bradado aos quatro ventos que testes para detectar a presença do vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, não salvam vidas —UTIs e respiradores é que as salvam, pontifica ele. Ficar testando a população serve apenas para satisfazer “curiosidade de pesquisador”, diz Zema.
O envenenamento do debate público nos últimos anos mostrou como é possível combinar diversas afirmações aparentemente razoáveis a fim de compor um conjunto que não passa de sandice, e o raciocínio do governador mineiro é o exemplo mais acabado disso.
Sim, é óbvio que testes não são medidas terapêuticas. É lógico que os cientistas estão curiosos para saber como o vírus está se espalhando. Nada disso significa, entretanto, que informações sobre o número e a localização dos infectados não sejam altamente estratégicas para salvar muitas vidas —e a economia, é claro, a queridinha de novistas e bolsonaristas.
E isso porque doenças infecciosas são um fenômeno essencialmente populacional. Todos os parâmetros que fazem com que elas sejam devastadoras ou simples marolinhas dependem das rugas e dobras do tecido populacional pelo qual navegam —vale dizer, da proporção de pessoas infectadas, recuperadas e suscetíveis (ou seja, que ainda não tiveram a doença) num local, e do grau de proximidade entre elas.
Já há indicações claras de que o aparente sucesso de Minas no enfrentamento da pandemia é bem menos robusto do que sugerem os números oficiais. No papel, são 240 mortos por Covid-19 no estado até agora, mas outras 539 pessoas tiveram como causa de morte a chamada síndrome respiratória aguda grave —clinicamente muito similar à doença viral— de janeiro a abril deste ano.
O número, segundo estudo da Universidade Federal de Uberlândia, é 650% superior ao do mesmo período do ano passado. Ainda que uma parcela considerável desses falecimentos tenha outras causas —pneumonias causadas por bactérias, por exemplo— é altamente improvável que a mão de ferro do coronavírus não esteja, em parte, por trás do aumento.
Por fim, consideremos ainda que problemas respiratórios são apenas uma das facetas letais da Covid-19. Já ficou claro que a doença também pode matar agravando problemas de coração, causando derrames ou até danos aos rins. Deixar de testar é abandonar a capacidade de compreender as múltiplas facetas da doença —e, portanto, de combatê-la com eficiência.
O único caminho para uma retomada consciente das atividades econômicas em Minas e no país é saber exatamente quem são e onde estão as pessoas infectadas e rastrear também os indivíduos com quem elas têm contatos, para quebrar a cadeia de transmissão.
Quem nem tenta obter essas informações está se condenando a enxugar gelo perpetuamente, enquanto a pilha de corpos cresce. Não existe escudo mágico protegendo as regiões do Brasil que ainda não foram muito afetadas pelo vírus. Se Minas continuar a escolher a ignorância, ninguém estará a salvo.
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