Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

O combo da desgraça

Ligar os pontos entre posições anticientíficas é essencial

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Não sei se o nobre leitor já reparou, mas a mania dos combos é uma das grandes desgraceiras do capitalismo tardio. Quem arquiteta os combos quer incutir no nosso cérebro a impressão de que estamos levando uma imensa vantagem ao gastar “só um pouquinho mais” para adquirir algo que não desejávamos de verdade, que talvez detestemos e que pode até nos fazer mal.

Comprou o livro? Leve a camiseta e o boné (mesmo que não use boné)! O hambúrguer sem as fritas e o refrigerante sai mais caro, senhor, tem certeza de que quer só o sanduíche? (Dane-se o seu risco de ficar com diabetes, senhor.)

Já seria muito ruim se a combomania ficasse restrita ao âmbito do fast-food ou da indústria cultural. Mas não há nada neste mundo que não possa ser piorado, o que significa que os combos colonizaram também o mercado das ideias, dos posicionamentos políticos e das práticas governamentais, com consequências ainda mais letais do que o hábito de nos entupirmos com bebida açucarada.

Os combos ideológicos estão matando muita gente nos últimos meses de pandemia —e vão matar ainda mais gente no decorrer deste século.

Meu colega Atila Iamarino, biólogo e colunista desta Folha, já tinha abordado parte do problema em seu recente texto sobre os “coronacéticos”.

Pois é, aquele pessoal que, num exercício de pega-pega cognitivo capaz de endoidecer até os mais sãos, primeiro diz que “é só uma gripezinha”, depois argumenta que o negócio é “isolar só os velhinhos” ou que vamos salvar a economia entupindo bilhões de pessoas com cloroquina, tudo isso enquanto esbraveja contra a China e as mazelas do “comunismo” (poucos países são mais capitalistas do que o gigante asiático hoje, mas tudo bem).

Como bem disse Iamarino, qualquer semelhança com os métodos de quem nega o papel da ação humana na crise climática não é mera coincidência –afinal, os autoproclamados “céticos do clima” empregam seu ceticismo altamente seletivo para afirmar que a culpa não é do homem, ou que a coisa não vai ser tão feia assim, que dióxido de carbono é só “fertilizante de plantinha” ou que novas tecnologias (com a mínima regulação estatal possível, claro) logo vão resolver qualquer problema.

Não são só as mesmas estratégias, porém. Com muita frequência, SÃO AS MESMAS PESSOAS usando argumentos capciosos, contraditórios ou impossíveis de testar empiricamente sem levar muita gente para o buraco antes.

Esse bloco ideologicamente coeso –sim, senhores, ideologia não é só o nome dado para visões de mundo que vocês detestam–, que inclui ainda o criacionismo e o armamentismo, caracteriza-se ainda por ser “conservador nos costumes e liberal na economia” e pela alergia ao Estado.

O único uso legítimo do poder estatal, para esse povo, é descer o sarrafo em meliante (cobrando o mínimo possível de impostos, é claro).

Ligar os pontos entre essas posições anticientíficas é essencial neste momento. A suposta preocupação com liberdades individuais e sustentabilidade econômica da turma do combo da desgraça não passa de um manto finíssimo lançado por cima de um instinto muito mais básico e canalha: se a desgraça real é ruim para os negócios, negue-se a desgraça.

Infelizmente, para muitos que nada lucram com isso, o combo da desgraça virou apenas bandeira pessoal de identidade ideológica. Poucos safados se dão bem graças a essa estratégia. É preciso desconstruí-la urgentemente.

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