Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

O jantar do dente-de-sabre

A anatomia dos ossos das criaturas ajuda a contar a história de suas vidas

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Se o Gênio da Lâmpada, com sua pele azul e voz de Robin Williams (ou de Will Smith), aparecesse por aqui e me oferecesse um único desejo, eu ficaria seriamente tentado a pedir para passar 24 horas no interior do Brasil de 20 mil anos atrás, em pleno Pleistoceno (a fase da história geológica da Terra popularmente conhecida como Era do Gelo).

Feche os olhos e imagine comigo, gentil leitor: vastos vales e chapadas onde corriam, pastavam e caçavam mamíferos de grande porte que poderiam, à primeira vista, fazer o espectador achar que estava nas savanas da África.

O olhar mais atento revelaria, porém, que os bichos de tromba eram mastodontes ou gonfotérios, não elefantes propriamente ditos; que os predadores de ar felino não eram leões, mas dentes-de-sabre; que, no lugar de zebras, tínhamos ao menos duas espécies de cavalos selvagens; e que esse elenco vagamente familiar era completado por seres bem mais exóticos, como preguiças que pesavam 3,5 toneladas e criaturas que lembravam uma lhama com tromba.

Esqueletos de uma preguiça gigante e de um dente-de-sabre no Museu de Zoologia da USP - Luiz Carlos Murauskas/Folhapress

A anatomia dos ossos dessas criaturas ajuda muito a contar a história de suas vidas, mas um jeito complementar de saber como eles viviam é analisar a composição química dos esqueletos primevos, o que revela a teia de interações ecológicas entre os animais e o ambiente que os circundava.

Dois estudos recentes, publicados pelo paleontólogo Mário Dantas e seus colegas da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e de outras instituições, usaram esses dados não apenas para reconstruir o que comiam preguiças-gigantes e cavalos extintos como também para trazer certa nódoa à temível reputação dos dentes-de-sabre. Tudo indica que os predadores preferiam caçar bichos de médio porte, apesar de seus imensos caninos supostamente invencíveis.

Nos trabalhos da equipe, no periódico Historical Biology e na Revista Brasileira de Paleontologia, os cientistas usaram amostras dos dentes e dos ossos de diversas espécies da fauna de gigantes para estudar as variantes dos elementos químicos carbono e oxigênio presentes no organismo dos bichos.
Essas variantes, ou isótopos, podem ser mais leves ou mais pesadas, e a proporção de cada tipo de átomo de carbono ou oxigênio ajuda a saber o que os animais andavam ingerindo dezenas de milhares de anos atrás. Entre os isótopos de carbono, por exemplo, temos o carbono-12, mais leve, e o carbono-13, mais pesado e bem mais raro.

Algumas plantas, como as gramíneas tropicais (milho, cana etc.), conseguem usar o carbono-13 de modo mais intenso em seu metabolismo, enquanto outras (gramíneas de regiões temperadas, árvores frutíferas) privilegiam o carbono-12. Já a presença elevada do isótopo oxigênio-18 indica que o bicho em questão tinha uma dieta relativamente pobre em água, tendo de beber grandes quantidades do líquido, ou que comia muitas folhas.

Combinando essas informações com a ajuda de modelos matemáticos, os pesquisadores confirmaram que os bichos viviam num ambiente relativamente aberto e seco, com características que lembravam o cerrado e a caatinga atuais, e que a maioria dos grandes herbívoros de então combinava uma dieta de gramíneas com folhas de árvores e frutos. E, como o carbono e o oxigênio dos ossos dos carnívoros vêm, em última instância, das plantas que os herbívoros comeram, é possível saber também o que o dente-de-sabre Smilodon populator comia.

Cavalos e lhamas (elas também existiam no Brasil), principalmente. Era bem mais raro que eles pegassem mastodontes ou as maiores preguiças. “Nesse caso, como os leões atuais, eles caçariam os indivíduos jovens ou velhos e fracos”, diz Dantas. Como sempre, as aparências enganam.

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