Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu Coronavírus

Pandemia da Covid-19 é hecatombe brasileira

É preciso ser muito tapado, maluco ou canalha para achar que temos mais é de tocar a vida

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Não existe absolutamente nada de normal no que está acontecendo. É preciso ser muito tapado, maluco ou canalha para achar que temos mais é de tocar a vida. Apenas a mais completa burrice ou desonestidade explica que o supremo mandatário de um país do século 21 não esteja arrancando os cabelos diante da morte de 100 mil pessoas em cinco meses por causa de uma doença infecciosa.

Mesmo numa nação tão desigual e ignorante quanto a nossa, já deveria estar abundantemente claro que algo fora da escala normal das coisas está se desenhando. A gripe espanhola, pior pandemia dos últimos séculos, matou 35 mil pessoas no Brasil (quase certamente uma subestimativa, mas ainda assim eloquente). Em 20 anos, de 1982 a 2002, a Aids ceifou as vidas de cerca de 150 mil brasileiros. Como é perfeitamente concebível que cheguemos a esse número tétrico no começo de 2021, só posso concluir que alguém está tentando justificar um slogan de campanha na linha 20 Anos em Um.

Não é apenas quantitativo. Estamos vivendo também um mergulho qualitativo no abismo. Um dos maiores triunfos da ciência médica em grande parte do mundo foi ter transformado o espectro primordial das doenças infecciosas em algo que, na imensa maioria dos casos, não precisamos mais temer. Vacinas, antibióticos e métodos eficazes de prevenção fizeram com que a morte causada por tuberculose, sarampo ou uma infecção besta na garganta deixasse de ser a regra, como era ainda no começo do século 20, para virar a exceção da exceção em qualquer lugar com algum sistema de saúde (e um mínimo de cérebro para continuar vacinando crianças em massa).

Graças a essa revolução científica e médica, o “normal” hoje é morrer em idade avançada e aos poucos, em especial de doenças cardiovasculares e câncer, as principais causas de morte no Brasil hoje. Mas a Covid-19 já está na terceira posição. De novo: fazia pelo menos um século que uma única doença infecciosa não ocupava esse posto no país.

É óbvio que parte dessa conta deve ser creditada ao fato de que o Sars-CoV-2 acabou de saltar de animais para seres humanos e, portanto, ninguém era imune a ele. Também é óbvio que a população brasileira é grande, o que explica parcialmente o número de mortes. “Ah, mas tem de ver as mortes por milhão de habitantes”, diz o espertalhão.

Mas é justamente o fato de que ninguém tinha imunidade contra o vírus, e o de que muita gente no Brasil ainda não teve contato com ele, que mostram como foi coisa de lunático não ter uma estratégia clara, coordenada nacionalmente e mais dura contra a doença. As ideias de jerico e as declarações que minimizaram a gravidade do problema, as apostas em quimeras farmacêuticas, as máscaras no queixo e as cavalgadas no STF —tudo isso custou vidas. E ainda há de custar dezenas de milhares, na melhor das hipóteses. E aí até a desculpa esfarrapada de “mortes por milhão de habitantes” vai desabar.

Um velho canalha disse certa vez que, se uma morte é uma tragédia, 1 milhão de mortes é só estatística. Isso só acontece, porém, quando a gente tolera esse tipo de raciocínio. E o primeiro passo para evitar que a tragédia vire farsa é jamais esquecer.

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