Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu universidade

Criadores dos sambaquis também tinham agricultura há 4.000 anos, mostra pesquisa

Construídos em restingas, esses rastros da história dos povos originários do Brasil estão ameaçados por mudanças capitaneadas por Ricardo Salles

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Milhares de anos atrás, boa parte da costa brasileira estava coalhada de monumentos funerários que, à sua maneira, eram tão grandiosos quanto as pirâmides ou Stonehenge.

Para celebrar seus mortos, os antigos habitantes de locais como o litoral sul de Santa Catarina e a região dos Lagos do Rio de Janeiro usavam conchas e outras matérias-primas para erigir morros artificiais que podiam alcançar dezenas de metros de altura. Sambaqui é o nome dado hoje a essas estruturas monumentais, termo tupi que muito provavelmente não era como os seus criadores as chamavam —elas foram construídas milênios antes da chegada dos povos que falavam essa língua ao litoral brasileiro.

As camadas que formam os sambaquis documentam detalhes dos festins funerários que eram sua razão de existir. Além da grande quantidade de sepultamentos humanos, há indícios do consumo de grande quantidade de peixes e outros alimentos de origem marinha, assim como exemplos de arte pré-histórica, entre os quais se destacam os chamados zoólitos —estatuetas de animais (os peixes se destacam) feitas com pedra polida.

 Conchas do sambaqui Crumaú, em Guarujá (SP), um dos maiores do mundo; nas escavações também foram encontrados vestígios de rituais funerários; veem-se conchas e vegetação em close
Conchas do sambaqui Crumaú, em Guarujá (SP), um dos maiores do mundo; nas escavações também foram encontrados vestígios de rituais funerários - Manoel Gonzales/Divulgação

Tudo isso parece ter sido trazido para esses locais como oferenda aos mortos, enquanto a monumentalidade dos sambaquis talvez ajudasse a demarcar os territórios de diferentes clãs e linhagens durante gerações —alguns foram utilizados ininterruptamente para sepultamentos entre 4000 a.C. e 2000 a.C., por exemplo.

Costumava-se explicar a gênese dos sambaquis usando os frutos do mar como chave. Com efeito, os morros costumam estar presentes em áreas como lagunas e estuários, ricos em recursos pesqueiros. Em outros lugares do mundo, áreas assim tendem a atrair populações densas e formadoras de sociedades de grande porte. Os sambaquianos, portanto, seriam essencialmente especialistas em pesca.

Um novo estudo, porém, mostra mais uma camada de complexidade na cultura dos construtores litorâneos. Rita Scheel-Ybert e Célia Boyadjian, do Museu Nacional da UFRJ, verificaram que os restos de vegetais nos festins funerários e na alimentação cotidiana dos sambaquianos são bem mais comuns do que se imaginava.

Além de frutos de palmeiras, provavelmente coletados, há vários registros de cará, batata-doce, abóbora e milho nos montes artificiais, indicando familiaridade com a produção agrícola, mostra a pesquisa na revista científica Journal of Anthropological Archaeology.

Eles também parecem ter manejado a vegetação das restingas (área costeira mais arenosa, que inclui plantas rasteiras e florestas), de forma a aumentar a frequência de espécies vegetais úteis para o ser humano. Estavam mais para horticultores-pescadores, portanto. Gostaria de concluir esta coluna falando apenas de ciência, mas o governo federal não ajuda muito.

A já proverbial passagem da boiada do atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles —expressão usada pelo político para designar seu principal objetivo, a destruição da governança ambiental brasileira—, tem como um de seus mais recentes alvos as restingas habitadas e cultivadas pelos sambaquianos de milênios atrás. Se depender de Salles, a proteção a esses ambientes vai para a lata do lixo.

Não deixa de fazer certo sentido nefasto, afinal. Ser permissivo com a devastação das restingas equivale a passar a boiada não apenas por cima da biodiversidade, mas também por cima de um dos capítulos mais ricos da história dos povos originários do Brasil —uma história que, para o governo Bolsonaro, deveria estar morta e enterrada, em nome da “unidade da nação”.

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