Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu dinossauro

Fósseis surrupiados dizem muito sobre nosso fracasso como nação

Ubirajara jubatus, de 110 milhões de anos, foi parar na Alemanha da maneira mais picareta possível

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Afinal de contas, quem se importa com dinossauros? “Só as crianças e o Reinaldo”, soltou certa vez um colega de jornal durante uma reunião (prefiro não mencionar o nome dele aqui —a piada, ainda que um tanto insensível, não me parece ter sido feita com intenção de humilhar). Decerto não surpreenderei ninguém se disser que discordo. Aprende-se um bocado com dinossauros —em especial quando eles são roubados.

Não há outra palavra para descrever o que aconteceu com o Ubirajara jubatus, um bicho de 110 milhões de anos que viveu onde hoje seria o sertão do Ceará. Adornado com restos de penas primitivas, trata-se de um espécime único para a paleontologia brasileira —mas foi parar na Alemanha da maneira mais picareta possível.

A colega Giuliana Miranda contou a história com a competência de sempre nesta Folha: usando um documento datilografado em 1995 que mais parece ter sido feito em papel de embrulhar pão, o pesquisador Eberhard Frey, do Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe, conseguiu atravessar o Atlântico com os fósseis.

Alguns detalhes precisam ser destacados: o tal documento fala em “transporte” das peças (designadas como “duas caixas contendo amostras calcárias com fósseis”, sem dizer que diabos estaria dentro delas), não em posse delas por parte do museu alemão. E isso pelo simples fato de que a legislação brasileira, desde os anos 1940, não permite que esse tipo de objeto fique nas mãos de estrangeiros, ou de particulares no Brasil: fósseis são bens da União, estipula a lei.

Depois que a descrição da espécie foi publicada na revista científica Cretaceous Research, paleontólogos brasileiros, com toda a razão, usaram suas redes sociais para condenar o desrespeito à legislação e à comunidade científica do país. Seguiu-se um show de horrores colonialista: Frey insinuou que o Brasil ainda estava no lucro porque, afinal, o dinossauro não foi incinerado como os fósseis que estavam no Museu Nacional em 2018; o britânico David Martill, outro autor do estudo, também ironizou o incêndio do Museu Nacional e fez questão de lembrar: “Nós [o Reino Unido] ainda somos um império”.

O jogo, no entanto, parece estar virando. Mobilizando as redes sociais e a comunidade acadêmica, paleontólogas como Aline Ghilardi, da UFRN, e Taissa Rodrigues, da Ufes, bem como a chefia da Sociedade Brasileira de Paleontologia, conseguiram pressionar suficientemente a Cretaceous Research para que a publicação da pesquisa sobre o dino emplumado fosse suspensa, ao menos por enquanto. Agora, a batalha legal deve ser pela repatriação dos fósseis.

E daí? Tudo isso não seria só fixação infantil dos paleontólogos (e minha) com bicho extinto? De novo, discordo. Casos como esse são um microcosmo do muito que há de errado conosco enquanto nação.

Fósseis brasileiros só são traficados por causa da miséria que empurra os sertanejos para uma forma ilegal de comércio e coloca no caminho deles atravessadores espertalhões. Nossos dinos só cruzam fronteiras porque nosso Estado tosco e disfuncional é extremamente eficiente na hora de cobrir pobre de pancada, mas vira amigão do peito do primeiro gringo que conseguir molhar a mão de um fiscal.

Acima de tudo, a saga do Ubirajara mostra que, do outro lado da trincheira, ainda há gente que sabe que a história –e a pré-história– importam. Que construir uma identidade brasileira que valha a pena depende de honestidade e ciência, e não de ignorância e brutalidade. A esses corajosos, meus votos de um feliz 2021.

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