Tive um colega de trabalho (não nesta Folha, apresso-me a acrescentar) que resolveu, um belo dia, fazer uma ode às virtudes do que ele chamava de "repórter burro".
"Não resolve nada o cara entender muito dos assuntos que cobre. Tem de ser meio burrão mesmo, fazer as perguntas que qualquer um faria, senão ninguém vai entender nada", sentenciava o sujeito.
Parece que o espírito do colega supracitado baixou no ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, durante sua fala à imprensa quando o Brasil alcançou a marca de 200 mil mortos por Covid-19, dias atrás. "Não queremos a interpretação dos fatos dos senhores", disse então o ministro. "Deixem a interpretação para o povo brasileiro."
Para que o ministro não me acuse de furor interpretativo, tentarei destrinchar a declaração economizando nos adjetivos (como, aliás, recomenda a prática jornalística). Na verdade, um só me basta, e apenas para o começo da conversa: o que o ministro exige é, por princípio, impossível.
Basta pensar na quantidade de fatos que acontecem no Brasil e no mundo a cada minuto.
Mesmo que restrinjamos o interesse dos jornalistas apenas aos que se sucedem diante dos olhos do público, é impossível (repito o adjetivo) que todos eles caibam nas páginas dos jornais e revistas ou até na cobertura 24h de certos canais de notícias na TV.
Não haverá braços que cheguem, mesmo entre os jornalistas que trabalham em sites (onde não existe limitação de espaço, teoricamente), para escrever sobre tudo isso. É preciso selecionar o que vale ser publicado e o que não vale.
Seleção é uma forma de interpretação, general. De fato, o mesmo ocorre com os raios de luz que chegam às células da retina de todos nós: o sistema nervoso consegue detectar e reconstruir na forma de imagem apenas parte do espectro de luminosidade ao redor dos olhos. (Infelizmente, nenhum de nós enxerga ultravioleta —que inveja das abelhas.)
Não existe "o fato", embora existam modelos do mundo que o sistema nervoso cria com base em fatos (esperamos que sim, pelo menos —não é o que tem acontecido com muitos fãs do chefe de Pazuello).
Há mais caroço nesse angu, porém. Ao contrário dos seres humanos, as opiniões não nascem dotadas de iguais direitos e dignidades. Algumas fazem sentido e estão baseadas, veja só que coisa, em fatos; outras são achismo; e há as que foram tiradas de algum orifício da anatomia de quem está opinando.
Faz parte do ofício do jornalismo mostrar que, ao contrário do que dizia Guimarães Rosa, pão e pães não é só questão de opiniães (o autor mineiro de fato escreveu a palavra desse jeito, antes que me acusem de analfabetismo —hoje em dia, nunca se sabe).
E ajuda um bocado quando o jornalista em questão domina os fatos da área que está cobrindo a ponto de saber o que faz sentido e o que não faz nas "opiniães" que está colhendo –inclusive as pronunciadas por autoridades como o ministro da Saúde.
Fazer menos do que isso é abrir mão do dever de informar com responsabilidade, principalmente quando certas interpretações dos fatos podem custar vidas.
E, já que o ministro gosta tanto dos ditos cujos, eis alguns fatos que não estão sob discussão, independentemente da ideologia: Tratamento precoce eficaz para a Covid-19 não existe, apenas tratamento dos sintomas; máscaras e distanciamento social salvam vidas e protegem a saúde pública;vacinas não alteram o DNA; Negacionismo mata.
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