Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu África

Estudo traz novo olhar sobre suposta guerra na África pré-histórica

Dezenas de restos mortais foram achados com lesões em diferentes partes do corpo

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Que tipo de vida levavam os nossos ancestrais da Idade da Pedra? Existem inúmeros jeitos de responder a essa pergunta (até porque ela é um tanto vaga), mas uma tradição que já dura séculos é dar ênfase à tremenda insegurança que devia caracterizar o cotidiano deles. Nas palavras do pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679), seria uma existência caracterizada pelo “medo e perigo contínuos de sofrer morte violenta; e a vida do homem [era] solitária, pobre, asquerosa, brutal e curta”.

Convém ressaltar que Hobbes desfiou esse rosário de adjetivos desanimadores muito antes que informações confiáveis sobre a pré-história da nossa espécie fossem desencavadas. De lá para cá, porém, dados diretos sobre a suposta vida “brutal e curta” têm vindo à tona. E um dos locais mais emblemáticos para entender o que acontecia nesse passado remoto é o cemitério de Jebel Sahaba, no vale do rio Nilo.

Esse sítio arqueológico ficava no Sudão, um pouco ao sul da fronteira com o Egito, e hoje está debaixo das águas do gigantesco lago Nasser, criado durante a construção de uma hidrelétrica. Nos anos 1960, quando Jebel Sahaba foi escavado originalmente, a análise das dezenas de esqueletos sepultados ali pareceu confirmar as piores previsões (ou retrovisões, já que estamos falando do passado) do velho Hobbes.

Em suma, o sítio sudanês, cuja ocupação teria se estendido entre 18,5 mil anos e 13,5 mil anos atrás, tinha todo o jeito de ser o registro da primeira guerra da nossa espécie. Dezenas de restos mortais de homens, mulheres e crianças foram achados com lesões em diferentes partes do corpo e/ou associados a instrumentos de pedra que pareciam ter sido usados para massacrar tais pessoas. Uma das interpretações para as descobertas é que um único evento de violência (um confronto que poderia ter envolvido até algumas centenas de caçadores-coletores da região) explicaria os sepultamentos.

Estudo traz novo olhar sobre suposta guerra na África pré-histórica
Estudo traz novo olhar sobre suposta guerra na África pré-histórica - Reprodução

A situação real, porém, provavelmente foi mais complexa, indica um estudo recente coordenado por Isabelle Crevecoeur, da Universidade de Bordeaux. Em artigo na revista especializada Scientific Reports, a pesquisadora francesa e seus colegas conduziram uma nova análise dos esqueletos de Jebel Sahaba, identificando inclusive diversas lesões e restos de armas de pedra que tinham passado batido nos estudos dos anos 1960.

Dos 61 indivíduos estudados por Crevecoeur e companhia, 41 apresentam sinais de algum tipo de violência, mas em apenas 16 deles essas lesões aconteceram “perimortem”, ou seja, no momento em que essas pessoas morreram. A maior parte dos ferimentos, em geral produzidos com flechas ou outros instrumentos usados para ataques a distância, acabou sarando ao longo da vida das pessoas.

Além disso, a distribuição de idades dos mortos não é o que se espera de um episódio de guerra, no qual normalmente há mais vítimas entre jovens e membros do sexo masculino. O conjunto dos dados indica algo mais sutil: uma comunidade que foi sendo vitimada paulatinamente, ao longo de décadas, por disputas de pequena escala com vizinhos, talvez por causa da intensificação da seca na área nos milênios finais da Era do Gelo.

Portanto, não era uma vida de horror apocalíptico, ainda que estivesse longe de ser um mundo de paz primeva. O que fez com que esse tipo de instabilidade deixasse de ser a norma para a nossa espécie foi uma invenção hoje muito atacada por gente ignorante: o Estado, capaz de moderar os conflitos entre indivíduos.

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