Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Que comam plástico

Material virou armadilha da evolução para milhares de espécies de animais, diz estudo de brasileiros

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“Tô chateada, queria tanto comer uma sacolinha plástica”, dizia a legenda de um meme que vi certa vez, sobreposta a um desenho de tartaruga-marinha que lembrava um pouco as que aparecem no desenho animado “Procurando Nemo”. Que alguém se disponha a fazer graça na internet ao saber que tartarugas-marinhas engasgam com o plástico que flutua nos oceanos é mais um sintoma de como a vida online tem um poder assustador para nos desumanizar. Acima de tudo, porém, o meme demonstra uma incapacidade quase patológica de compreender o tamanho do problema.

Ingerir plástico, com efeito, está longe de ser mera burrice de tartaruga-marinha. Pouco tempo atrás, pesquisadores brasileiros reviraram a literatura científica sobre o tema e fizeram uma conta aterradora: ao menos 1.565 espécies de animais, espalhadas por todos os ambientes que conhecemos no mar, nos rios e em terra firme, andam comendo esses polímeros fabricados a partir do petróleo que arrancamos do subsolo. Trata-se, aliás, de uma subestimativa, já que o problema tem sido estudado mais intensamente apenas no caso dos animais marinhos (que correspondem a 1.288 das espécies do total citado acima).

Tartaruga com saco plástico na cabeça
Tartaruga verde come sacola plástica na Grande Barreira de Corais da Austrália - Troy Mayne/WWF

Esse inventário nada animador está num artigo na revista especializada Science, assinado por Robson Santos, da Universidade Federal de Alagoas, e Ryan Andrades, da Universidade Federal do Espírito Santo. Junto com Gabriel Machovsky-Capuska, que trabalha na Universidade Massey, na Nova Zelândia, os brasileiros defendem que a emergência global representada pela ingestão de plásticos na natureza pode ser compreendida como uma armadilha evolutiva. Em outras palavras, trata-se de uma situação na qual os instintos dos mais diversos bichos, forjados por milhões de anos de seleção natural, simplesmente não foram calibrados com precisão suficiente para que eles consigam escapar da atração gastronômica representada pela avalanche plástica.

Aqui, é claro que o adjetivo “gastronômica” é só força de expressão. Estamos falando de fome e, portanto, de sobrevivência. O que está acontecendo não é bem que as diferentes formas, cores e texturas dos plásticos acabam parecendo mais atraentes como alimento para os bichos do que a comida de verdade, ainda que isso também seja possível em alguns contextos.

Ao que tudo indica, a abundância crescente dos poluentes se soma a fatores como maior degradação do ambiente de maneira geral, o que inclui falta de alimentos apropriados. Nessas situações, muitas espécies acabam se arriscando a comer aquele negócio esquisito boiando, que lembra vagamente uma água-viva (digamos), porque isso talvez seja preferível a passar fome.

Também é preciso levar em conta os hábitos de cada espécie: a probabilidade de que os bichos se disponham a correr esse tipo de risco aumenta se eles são generalistas, e não especialistas (ou seja, normalmente já comem uma grande variedade de alimentos), e se já devoram carcaças ou outros dejetos normalmente. Mas nem caçadores de visão aguçada acostumados a atacar presas rápidas, como os falcões, escapam da confusão alimentar causada pelos plásticos. De fato, há registros do hábito deletério em todos os pontos da teia alimentar, de herbívoros e comedores de detritos a superpredadores.

Não há outro caminho para minimizar essa tragédia em andamento do que pensar em alternativas industriais e econômicas que substituam boa parte dos plásticos que a humanidade não cessa de produzir. O desafio é gigantesco, mas, nesse meio-tempo, talvez valha a pena parar de fazer piada com o indizível.

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