Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Criticando 'Sapiens', livro mostra como povos antigos tentavam combater desigualdade

Obra do historiador israelense Yuval Noah Harari merece ser conhecida

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Poucos livros me deleitam mais do que aqueles que buscam retratar a totalidade da aventura humana em grandes pinceladas, tentando enxergar os padrões por trás da mera sequência de um fato após o outro que às vezes parece caracterizar nossa história. O exemplo mais conhecido desse gênero nos últimos tempos é o onipresente "Sapiens", do historiador israelense Yuval Noah Harari (agora até em quadrinhos).

Essa e outras obras com escopo semelhante merecem ser conhecidas, sem dúvida, mas elas têm o defeito de pintar um quadro bastante unilateral da trajetória das civilizações. Se você procura um contrapeso para esse problema, vale a pena ler "The Dawn of Everything" ("A Aurora de Tudo"), escrito pelo antropólogo David Graeber e pelo arqueólogo David Wengrow.

Reconstrução da cidade neolítica de Çatalhöyük, na Turquia
Reconstrução da cidade neolítica de Çatalhöyük, na Turquia - Wolfgang Sauber / Wikimedia

Usei o adjetivo "unilateral", mas preciso acrescentar outro com o mesmo prefixo, que ajuda a tipificar os problemas de obras como "Sapiens". A narrativa desse gênero de best-sellers tende a ser unidirecional demais quando aborda a evolução das sociedades humanas. Tais livros costumam enfatizar como o surgimento da chamada produção de alimentos (agricultura e criação de animais, para usar termos que todo mundo vai reconhecer) colocou em movimento engrenagens que produziriam populações densas, fortes desigualdades sociais, Estados com governantes despóticos e exércitos permanentes, inovação tecnológica crescente.

Nada parecido com isso teria existido durante os 99,9% da história da nossa espécie que precedem a chamada Revolução Agrícola, há apenas 10 mil anos (enquanto o Homo sapiens teria surgido entre 300 mil anos e 200 mil anos atrás). Antes que o plantio e a criação de bichos domésticos ganhassem força, todos os nossos ancestrais se contentavam com a vida em pequenos grupos igualitários de dezenas de membros, caçando e coletando alimentos. A Revolução Agrícola destruiu o nosso igualitarismo original, mas esse era o único jeito de criar sociedades de grande escala, complexas e vibrantes como as nossas. O abismo entre bilionários e indigentes é o preço a se pagar pela existência de Shakespeare e da internet, em suma.

"The Dawn of Everything" pode ser lido como um imenso "só que não" contraposto à tese acima. Um dos aspectos mais divertidos do livro é desfazer a aura de inevitabilidade em torno das consequências da Revolução Agrícola (aproveitando para tirar certo sarro das simplificações excessivas de Harari e companhia).

Segundo o livro, os dados arqueológicos mais recentes indicam que a produção de alimentos, embora tenha criado comunidades populosas após alguns milhares de anos, não parece ter sido um gerador automático de desigualdade social e guerra.

As primeiras cidades do Oriente Próximo e na Europa Oriental, como a impronunciável Çatalhöyük, na Turquia, tinham estrutura igualitária, sem templos ou palácios. Mesmo as grandes monarquias da Mesopotâmia, que dariam origem a impérios como a Assíria, tinham de dar voz a um sistema mais antigo de assembleias municipais "populares". E, do lado de cá do Atlântico, cidades pré-colombianas também parecem ter sido capazes de criar sistemas "republicanos" que nada deviam às cidades-Estado da Grécia Antiga.

Para a dupla de autores, esses exemplos mostram que a capacidade de pensar em soluções políticas para a desigualdade sempre esteve presente nas sociedades pré-modernas, é isso em todos os cantos do mundo. O debate suscitado pelo livro está longe de terminar, mas trata-se, no mínimo, de um pensamento encorajador.

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