Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

A farsa da imunidade natural

Só ignorantes ou desonestos defendem que imunidade natural é melhor do que vacina

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Pelo menos algumas coisas essenciais já deveriam ter ficado claras na cabeça das pessoas depois de quase dois anos de pandemia, mas nossa incapacidade coletiva de aprender o básico do básico nunca deixa de me surpreender. Um dos exemplos mais estúpidos é o fato de que ainda tem gente sonhando com "imunidade natural" como passaporte mágico para sair do limbo do coronavírus. Não é melhor todo mundo "pegar logo" o diacho da doença? Não seria uma proteção igual à da vacina, ou até melhor?

Não, não seria. A cavalgadura que ora ocupa o Palácio do Planalto pode ficar repetindo o quanto quiser essa falácia (o que, infelizmente, ele tem feito diversas vezes ao longo dos últimos anos), mas isso não vai transformar a besteira em fato.

Já volto à comparação com as vacinas, tema que continua sendo importantíssimo, mas peço ao leitor que dê um passo atrás comigo antes disso. Acontece que quem se fia na imunidade natural está agindo com base numa premissa falsa sobre o tipo de inimigo microscópico que causa a Covid-19.

Enfermeiro prepara dose da Pfizer para crianças em hospital de Frankfurt, na Alemanha
Enfermeiro prepara dose da Pfizer para crianças em hospital de Frankfurt, na Alemanha - Kai Pfaffenbach/Reuters

As interações entre os causadores de doenças e o sistema de defesa do nosso organismo são de uma complexidade barroca, e ainda falta muito para compreendê-las totalmente, mas um aspecto indiscutível delas é que a duração da imunidade obtida por quem se recupera do ataque de um vírus varia muito. Em geral, essa variabilidade tem a ver com o tipo de invasor.

Sabemos que certos vírus podem gerar imunidade para o resto da vida em quem sobrevive a eles. É o caso do causador do sarampo —um flagelo que, aliás, tem retornado ao Brasil por causa do nosso descuido com a vacinação. Numa simplificação para fins didáticos, vamos chamar os vírus desse feitio de "tipo 1".

Mas todo mundo já deveria ter se familiarizado com o multiforme vírus da gripe. Ninguém pega gripe uma única vez na vida e fica imune pelas décadas seguintes. As pessoas voltam a adoecer de gripe o tempo todo, talvez até dezenas de vezes da primeira infância até a velhice. Em parte, isso se dá porque existe uma enorme variedade de cepas (subgrupos) do chamado vírus influenza, as quais contam com grande potencial de recombinar partes de seu material genético e, assim, chutar a bola por entre as pernas do nosso sistema imune. Agora, chamemos os vírus como o da gripe de "tipo 2".

Bem, o Sars-CoV-2, causador da Covid-19, não é um vírus do tipo 1. Está claríssimo que ele é um vírus do tipo 2. Para sorte de todos nós, seus mecanismos de reconfiguração genética estão longe de ser tão versáteis quanto os dos vírus influenza, mas ainda são robustos o bastante para permitir múltiplas reinfecções ao longo da vida. Não há nada de surpreendente nisso, porque é exatamente assim que operam seus parentes que são nossos velhos conhecidos, os coronavírus que causam formas de resfriado comum. Quantos resfriados o gentil leitor já pegou na vida?

Portanto, é conversa de lunático dizer que o "corona" versão ômicron é uma "cepa vacinal". Quem pegou o Sars-CoV-2 "versão 1.0" pode muito bem ter se reinfectado com a variante delta em 2021 e ainda ter ganhado outra reinfecção de lambuja com a ômicron em 2022.

E as vacinas? Elas foram projetadas para gerar uma resposta padronizada, robusta e focada do sistema de defesa do organismo, sem os subterfúgios que o vírus usa numa infecção natural. Já sabemos que não são perfeitas, e a necessidade de atualizá-las com novas versões do vírus ou de seu material genético se avizinha —a exemplo do que se vê com a vacina da gripe. Mas elas são muito, muito melhores que a alternativa. Vacine-se. Vacine seus filhos.

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