Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

O bonobo dentro de nós

Capacidade de se dar bem com estranhos, que criou sociedade humana, também aparece em bonobos

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De vez em quando, eu me ponho a pensar no absoluto milagre que é esse negócio de a gente encontrar completos desconhecidos o tempo todo na rua e não sair no braço com os sujeitos, nem apanhar deles. É, eu sei que a afirmação parece completamente despropositada, mas o fato é que essa invenção maravilhosa da sociedade humana conhecida como "tolerância com estranhos" não tem nada de inevitável. Duvida? Pergunte aos chimpanzés.

Nossos parentes vivos mais próximos, membros da espécie Pan troglodytes, simplesmente não fazem ideia de como seria trocar amabilidades com algum chimpanzé que tenham acabado de conhecer. Na natureza, todas as interações entre os membros de um grupo desses grandes símios com membros de uma outra comunidade de chimpanzés terminam em fuga ou confronto.

Fêmea de bonobo com seu filhote no zoológico de Wilhelma, em Stuttgart (ALE)
Fêmea de bonobo com seu filhote no zoológico de Wilhelma, em Stuttgart (ALE) - Franziska Kraufmann - 23.abr.13/AFP

A única exceção —ainda assim bastante relativa— envolve a transferência de fêmeas que acabaram de alcançar a idade reprodutiva de um grupo para outro. Tal como muitas culturas humanas, os chimpanzés são considerados patrilocais, ou seja, os machos ficam no mesmo bando a vida inteira, enquanto as moças deixam sua família (não para casar, já que eles não são monogâmicos, mas para acasalar com diversos machos). E isso não significa que fêmeas sozinhas também não possam ser agredidas, por vezes até a morte, quando membros de outro grupo topam com elas na mata. Tudo isso significa que, em termos de interação social, os chimpanzés passam suas vidas circunscritos a uma rede que reúne, no máximo, cerca de uma centena de indivíduos.

Até as sociedades humanas de menor escala, os chamados caçadores-coletores móveis, lidam com esse problema de forma muito mais sofisticada. Embora a harmonia universal esteja longe de reinar entre os grupos com essa organização social, a troca relativamente pacífica de notícias, matérias-primas, tecnologias e parceiros sexuais se estende por redes muito mais amplas, com milhares de indivíduos. Parentesco e amizades transcendem os bandos (como são chamadas as unidades sociais básicas, mais ou menos com o mesmo tamanho dos grupos de chimpanzés).

O que significa que temos um pequeno enigma: considerando esse abismo, como os seres humanos se tornaram mais tolerantes com desconhecidos? Com a palavra, os bonobos (Pan paniscus), nossos outros primos de primeiro grau.

Esses grandes símios são mais famosos pela sua vida sexual promíscua e aparentemente idílica, mas também havia indícios de que a maior parte das interações entre diferentes grupos da espécie é pacífica. No entanto, ainda havia dúvidas sobre o que estava acontecendo exatamente nesses casos. Uma possibilidade é que os aparentes encontros tranquilos entre grupos diferentes na verdade fossem apenas a interação entre subgrupos de uma única grande comunidade.

Um estudo que saiu recentemente na revista especializada americana PNAS parece ter matado a charada, em favor da ideia de que, de fato, os bonobos são excelentes animais políticos. Um trio de pesquisadores liderado por Liran Samuni, primatóloga da Universidade Harvard, usou métodos estatísticos sofisticados para dissecar as ligações entre os bonobos que vivem em Kokolopori, na República Democrática do Congo.

A conclusão: os grupos são unidades sociais reais, com identidade própria e interação preferencial entre seus próprios membros —mas ainda assim não descambam para a pancadaria quando encontram outros grupos, aliás, muito pelo contrário.

A nossa capacidade de criar elos com gente muito diferente de nós talvez seja, portanto, um elemento tão antigo da nossa linhagem quanto a xenofobia dos chimpanzés. Somos um primata complicado —coisa que, se nos dá um bocado de trabalho, também não deixa de ser motivo para ter alguma esperança.

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