Renata Mendonça

Jornalista, comenta na Globo e é cofundadora do Dibradoras, canal sobre mulheres no esporte.

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Futebol brasileiro aceita ameaça a atletas e só responde com nota de repúdio

Agressão e intimidação não podem ser consideradas 'ossos do ofício'

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Imagine a seguinte situação: você sai de casa para o trabalho e, no caminho, seu carro é alvo de um ataque. Pessoas que você não conhece jogam pedras na sua direção, o xingam, trazem pedaços de pau e fazem ameaças. Você consegue desviar delas e chega ao escritório, é dia de uma reunião importante. Você conseguiria trabalhar depois de tudo isso?

Essa situação parece absurda e dificilmente aconteceria na vida de um trabalhador comum. Agressão, ameaça, intimidação não podem ser considerados "ossos do ofício".

Mas, no futebol, são. No último sábado, o ônibus que levava os jogadores do São Paulo para o Morumbi antes da partida contra o Coritiba foi alvo de uma emboscada de torcedores. Há relatos de que jogadores se abaixaram para não serem atingidos pelas pedras que eram jogadas nos vidros das janelas. Explosivos também foram encontrados no local.

Furos na lataria do ônibus da delegação são-paulina, atacada por torcedores
Furos na lataria do ônibus da delegação são-paulina, atacada por torcedores - Marcello Zambrana/AGIF

Nada mudou na rotina daquele dia. Os jogadores foram para o jogo, entraram em campo normalmente e foram elogiados pelo "profissionalismo".

"Os jogadores foram muito profissionais, trabalharam muito e tentaram ganhar o jogo. Apesar do que aconteceu eles foram profissionais e foram muito unidos no jogo de hoje", afirmou o técnico Fernando Diniz na entrevista pós-jogo.

Isso leva à interpretação de que entrar em campo depois de um ataque como esse que sofreram os jogadores do São Paulo é ser profissional. Como se a eles coubesse apenas cumprir as obrigações do emprego, independentemente das condições em que tivessem de fazer isso.

A verdade é que, no futebol, a gente se acostumou com o absurdo. Tanto, que ele virou normal. O novo velho normal do futebol brasileiro, que segue aceitando jogadores intimidados, ameaçados, agredidos, na rua, no aeroporto, no CT. Tudo isso vira apenas nota de repúdio. E segue o jogo.

Aconteceu em 2009, quando o Palmeiras viveu situação parecida: era líder do Brasileiro, teve queda de rendimento (e de posições na tabela), e o ônibus da delegação foi atacado na estrada após um jogo. O atacante Vagner Love foi agredido na porta de um banco.

Aconteceu em 2020, quando o Corinthians acumulou maus resultados, e torcedores ameaçaram jogadores no aeroporto. E também quando torcedores do Figueirense invadiram o CT para agredir o time. Teve invasão no Vasco. Aconteceu já em 2021, quando flamenguistas cercaram jogadores na chegada ao treino. E agora, com o ataque ao ônibus do São Paulo.

A impressão que tenho é de que aceitamos essas situações com mais naturalidade do que deveríamos.

Depois de tudo isso, o jogo aconteceu. Os jogadores entraram em campo. A gente repudia, mas analisa a partida, fala de desempenho, de tática, de um jogo que aconteceu horas depois de um ataque violento como esse.

Voltemos à situação inicial: é como se o seu chefe o cobrasse por uma participação ruim numa reunião importante depois de ter sido agredido no caminho para o trabalho.

Já ouvi relatos de ex-jogadores sobre as reuniões que os clubes permitiam entre elenco e torcedores.

Ali, os atletas ouviam coisas como "eu sei onde sua mulher mora, onde seu filho estuda". Tudo isso dentro das dependências do próprio clube que autoriza as "conversas". No episódio com o São Paulo, mesmo com a rota inédita do ônibus, torcedores sabiam onde encontrá-lo –coincidência?

Se situações assim seriam absurdas em outras profissões, elas também não podem ser toleradas no futebol. Não dá para seguir o jogo, quando os protagonistas dele estão ameaçados.

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