Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Perigo: importantes lições de vida

Aos 15 anos, eu conseguia fazer tudo, mas não sabia; e agora sei, mas não consigo

"Tudo o que sei sobre a moral, devo-o ao futebol", terá dito Camus —mas, quando eu soube dessa frase, infelizmente, já tinha desperdiçado bastante tempo a ler Immanuel Kant.

Mesmo assim, quando o Tiago me telefonou, nesta semana, a dizer que estava a organizar um jogo do nosso antigo time da escola, aceitei.

Gosto muito de filosofia. Sobre moral, no entanto, desta vez não aprendi nada. Mas sobre a minha decadência, fiz doutorado.

Quando eu era pequeno, o Benfica tinha um extraordinário meia chamado Carlos Manuel. Eu, claro, queria ser o Carlos Manuel. Mas hoje, quando jogo, quero ser quem eu era quando queria ser o Carlos Manuel.

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

É deprimente. Percebo que a vida está num ponto insuperavelmente baixo quando dou por mim a querer ser eu. Não há sonho mais triste que esse.

A gente corre menos, agora. Parece que o jogo decorre dentro de água. Por outro lado, sabemos mais, mas a sabedoria não serve para muito. Aos 15 anos, eu conseguia fazer tudo, mas não sabia; e agora sei, mas não consigo.

Não posso dizer com precisão quando é que a experiência ultrapassou a capacidade física, mas houve certamente um momento em que elas estiveram exatamente a par.

Durante uns cinco minutos, eu devo ter sido um bom jogador. Infelizmente, não estava a jogar, nessa altura. Apesar de tudo, jogamos bem. Fiz três gols. Perdemos.

Há 30 anos, teríamos ficado a pensar nisso, com alguma amargura. Agora estávamos a cumprimentar-nos, no fim do jogo, a celebrar o reencontro e, sobretudo, o fato algo surpreendente de ninguém ter tido um enfarte.

Quem vê um grupo de homens de meia-idade jogando deve engolir as observações jocosas e curvar-se com respeito. Está a observar heróis que, quando eram novos, arriscavam chegar a casa muito mais tarde que o prometido, e agora arriscam a falência de órgãos vitais.

A gente joga a primeira parte da vida com medo de apanhar do pai e a segunda com medo de deixar o filho órfão. Muitas vezes senti o gosto do sangue na boca e pareceu-me que o enfarte estava próximo. Mas, se eu driblasse mais um ficava na cara do gol, e o goleiro deles era um gorducho. Valia a pena desafiar a morte.

Resumindo: durante uma hora e meia, pude sonhar que eu era eu, e não morri. Não foi nada mau. Envelhecer tem essa parte positiva: a gente já se contenta com pouco.

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