Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu humor

Sabedoria de velório

A erudição fúnebre é fruto do estudo, não de uma vocação íntima

Um amigo morre e logo alguém nos conforta: "Ele vai estar lá em cima a olhar para ti." Como assim, a olhar para mim? Se for verdade, lamento a minha sorte e a do meu amigo. A minha, porque não voltarei a estar à vontade, sabendo que o Fernando segue todos os meus passos; a dele, porque a minha vida é muito desinteressante.

 

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

Que tipo de entretenimento têm eles no céu para que o Fernando prefira passar a eternidade a olhar para mim? Bach não toca? Chaplin não atua? Shakespeare não declama? Por que é que o Fernando deseja ver-me, digamos, a escovar os dentes? Ele não era assim em vida. Nunca manifestou interesse em minha higiene pessoal.

É um estranho modo de consolar alguém. Dizer a uma pessoa que tem um morto a observá-la não costuma ser entendido como uma estratégia pacificadora. Ao contrário, é o começo de vários filmes de terror. Mas, no âmbito de um velório, convencionou-se que essa ideia tranquiliza.

Pessoalmente, nunca me ocorreria dizer a uma pessoa enlutada que o defunto iria passar a espiar todos os seus movimentos. Sempre admirei, aliás, as pessoas que sabem o que se há-de dizer em ocasiões tristes. Muitas vezes, compareço a velórios e, com medo de repetir o que já foi dito por outros, estabeleço com a viúva um diálogo parecido com este:

— Boa noite. Já lhe disseram "Muita força nesta hora"?

— Já, sim.

— E que talvez tenha sido melhor assim, porque ele não sofreu etc.?

— Também.

— E que não somos nada? Já lhe disseram?

— Ainda não.

— Então era o que gostaria de lhe dizer: não somos nada"¦

— É bem verdade. Muito obrigada.

Essa erudição fúnebre é fruto do exame atento de velórios anteriores, e não de uma vocação íntima. Fui registrando o que as pessoas diziam e agora repito, não inventei nada.

Há clássicos que não uso, no entanto. Por exemplo, nunca disse a ninguém: "Lamento imenso". Parece que eu tive alguma responsabilidade no enfarte e estou a pedir desculpa. Também não digo: "Os meus sentimentos". É uma frase sem verbo. Receio que uma viúva apreciadora de linguística pergunte: "Sim, que têm os seus sentimentos? Esqueceu-se do resto da frase?" A minha avó, que sabia comportar-se em velórios, não quereria que eu fizesse feio. E ela está lá em cima a olhar para mim.

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