Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu Copa do Mundo

Notas sobre veadagem na Copa

Esta palavra nada tinha a ver com sexo homossexual masculino

No fim de jogos chatos e muito feios como o Portugal x Marrocos, os torcedores da equipe vencedora viram Eduardo Bueno e decretam: "Futebol-arte, todo mundo sabe, é coisa de veado." A frase foi escrita há uma eternidade: 13 anos, acho eu.

Naquele tempo, as palavras ainda tinham vários sentidos. Veadagem queria dizer frescurinha, preocupação fútil, sofisticação dispensável, adorno supérfluo. Significava várias coisas, nenhuma das quais tinha nada --nada-- a ver com sexo homossexual masculino.

 

Até porque, se me permitem uma opinião, creio mesmo que haverá poucas coisas menos veadas do que sexo homossexual masculino. Para mim, parece-me demasiado bruto. Eu prefiro aquela veadagem bem mais suave que a gente faz com garotas.

A justa celebridade que a frase do Peninha obteve deve-se àquela impecável concisão, à magnífica cadência tripartida, ao tom insolentemente peremptório.

Porque aquela frase, curiosamente, é escrita-arte --que, inevitavelmente, também é coisa de veado.

Mas a razão principal para ela perdurar na memória das pessoas é outra: a frase resume o pensamento mais profundo do torcedor: a gente quer ganhar; para beleza há a ópera.

Entre ganhar jogando mal e perder jogando lindo, o torcedor não tem dúvida. Mesmo entre ganhar jogando mal e ganhar jogando bem, não tem certezas.

Há qualquer coisa nas vitórias com jogo feio que intimida os adversários presentes e futuros. Quem vence a jogar bonito, apesar de tudo, não assusta tanto, porque há uma certa fragilidade na beleza.

Mas quem joga feio e ganha mostra que está ali para fazer um trabalho, não para divertir.

Claro que, quando nós somos a equipe cujo futebol artístico esbarra no feio concreto das zagas façanhudas, ninguém se lembra do profeta Bueno. Aí maldizemos a insensibilidade estética do adversário, a sua falta de coragem para vir jogar olhos nos olhos, medir-se contra o nosso talento e sucumbir à vergonha.

Lamentamos que bárbaros daquela estirpe tenham permissão para vir dar chutão em templos onde só deveria entrar gente civilizada, menos interessada no vil metal das taças do que na jogada sublime.

Até porque esse futebol-pragmático, todo mundo sabe, é veadagem.

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