Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

O belo horrível

Parece óbvia a superioridade de uma feiura sem artifícios

Olha que coisa mais linda, mais cheia de toxina botulínica. Vai acontecer, é inevitável. Um dia, o botox há-de ser cantado.

Os poetas sempre aclamaram a beleza, e a pele lisa costuma ser considerada mais bela. Não é fácil rimar com botulínica, mas ser poeta não pode ser só usar aquela coroa de louros e passar a ser busto —uma forma de imortalização que tem a grande vantagem de deixar a barriga do lado de fora da eternidade.

É preciso exaltar o que é belo, e a beleza está cada vez mais complicada. O esforço para ser bonito pode causar danos na poesia, mas também está a prejudicar a própria ideia de beleza.

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

Uma espécie de doping estético começa a instituir-se, e é tão intenso que nós não conseguimos mais olhar para uma pessoa bonita sem desconfiar que estamos a ser vítimas de um logro.

Sim, determinada pele é luminosa, mas como sabemos que não resulta da aplicação de ácido tricloroacético, no decurso de um peeling? Claro, agora a pessoa está resplandecente, mas é possível que ainda há duas semanas fosse o fantasma da ópera, esperando em casa que a abrasão provocada pelo fenol cicatrizasse.

Pode ser pior. Alguma gente bonita recorre a métodos menos radicais, mas mais repelentes. A beleza que é obtida por meio das propriedades do creme de baba de caracol é, de fato, beleza? Se coisas que um caracol cuspiu me tornam belo, que tipo de beleza é a minha? Sobrancelhas perfeitas, em princípio, resultam de investimento em linha, pinça, cera —ou numa mistura das três.

Tem de ser vexatória, essa atenção dedicada a um segmento de três centímetros de penugem. De que serve ter sobrancelhas impecáveis se depois as usamos arqueadas, sempre que nos lembramos daquilo que passamos em nome da formosura capilar?

Virilhas suaves foram, quase se aposta, submetidas a raios laser. Que dignidade têm uns pés, por mais elegantes, se as suas peles velhas e borrachosas foram a refeição de um cardume de carapauzinhos, na pedicura de um shopping?

Parece óbvia a superioridade de uma feiura sem artifícios. Nós, os feios naturais, devemos orgulhar-nos. Talvez mais de sermos naturais do que de sermos feios. Mas é um orgulho.

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