Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu Copa do Mundo

Perigo, felicidade

O jogo estava para o futebol como as casas de Saransk estão para a arquitetura

Saransk

Quinta-feira (28) foi dia de ver ao vivo Panamá x Tunísia. A Arena Mordovia fica na rua Volgogradskaya, a mesma do meu apartamento, por isso tive apenas de percorrer algumas centenas de metros a pé, caminhando entre os espetacularmente horrorosos edifícios da cidade.

Quando se soube que, para escapar aos impostos franceses, o ator Gérard Depardieu tinha obtido nacionalidade russa e requerido domicílio fiscal em Saransk, todo o mundo pensou que o gesto era feio. Mas só quando se visita Saransk se compreende a verdadeira dimensão da ofensa. O que Maradona fez aos adversários da Argentina, com os dedos do meio, Depardieu fez à França, com burocracia.

O estádio foi construído para a Copa do Mundo e recebeu apenas quatro jogos, um dos quais esse excitante Panamá x Tunísia --mas nenhum habitante de Saransk parece levar a mal a pegadinha, e o ambiente era festivo.

Como em todas as festas, sentia-se um certo desespero no ar: este seria o último jogo da fase de grupos e no dia seguinte não haveria nenhuma partida. É o princípio do fim da Copa, e os torcedores sorvem um Panamá x Tunísia como um condenado à morte lambe as migalhas do prato na sua última refeição.

O russo que estava sentado ao meu lado na bancada quis saber primeiro se eu era tunisiano e depois se era panamenho, perguntas que indicam que tanto posso passar por norte-africano como por centro-americano --uma informação que me será útil sempre que precisar de fugir do FBI. Nunca se sabe.

O jogo começou, e um tunisiano deu um chutão muito alto, e depois a bola sobrou para um panamenho, que deu um chutão muito alto. O jogo estava para o futebol como as casas de Saransk estão para a arquitetura. Era um daqueles jogos a que se assiste melhor pela televisão, porque da bancada não se consegue ver que jogadores têm aliança, e então fica difícil saber quem são os solteiros e quem são os casados.

Como disse há dias, por vezes um Panamá x Tunísia é uma lição de vida, mas infelizmente era óbvio que este ia ser mesmo um Panamá x Tunísia. Resolvi então ir para casa, ainda a tempo de ver o gol da Bélgica contra a Inglaterra. E ali estava ela, a lição de vida: na celebração, Batshuayi chutou para o gol, a bola fez ricochete no poste e acertou-lhe em cheio no nariz. Ou seja: a felicidade dura pouco e, enquanto dura, pode fazer a gente quebrar a cara. Obrigado, futebol.

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