Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Prometeu acorrentado ao GPS

Introduzi o endereço e ele perguntou: 'Aceitar destino?'

Introduzi o endereço no GPS e ele perguntou: "Aceitar destino?". Nunca tinha reparado na pergunta. E agora? Como assim, "aceitar destino"? Não vinha preparado para uma decisão dessas. Uma pessoa pensa que vai dar uma volta de carro e de repente está numa peça de Sófocles.

Que destino estarei a aceitar? Posso responder que não, mas aí estarei a rebelar-me contra o destino. Dizem que isso não é bom. Mas também não vou aceitar um destino qualquer. O GPS tem de ser mais específico. E se me calha o destino de ter o fígado comido diariamente por uma águia? Aconteceu a outros, por que não a mim?

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

Na verdade, eu só queria ir ao supermercado. Preciso de cerveja. Só que também não estou confortável com a ideia de aceitar que o meu destino seja ir ao supermercado. Que destino mixuruca. Tem ligeiramente menos páthos do que matar o pai e casar com a mãe. E dá uma peça muito fraca.

Que dirá o coro das oceânides? "Olha como ele percorre a seção das frutas e legumes. Agora já está na zona das cervejas. Está indeciso entre duas marcas. Uma é pilsen, outra é lager, mas ele nunca entendeu qual era a diferença. Oh, ignorância. Oh, indecisão." Ninguém quer ver três atos disso.

Enfim, haverá destinos piores. Mais memoráveis, mas piores. E se a morte me espera no supermercado? Aceitar o destino será ir entregar-me nos seus braços.

Por curiosidade, coloco Samarcanda no GPS. Há aquela história do homem que vê a morte num mercado e foge para Samarcanda. O patrão do homem pergunta à morte: "Por que fizeste um gesto ameaçador ao meu servo?". A morte diz: "Não foi um gesto ameaçador, foi de surpresa: tenho um encontro marcado com ele amanhã, em Samarcanda". Pois bem, segundo o GPS, de Lisboa, onde moro, até Samarcanda, são 91 horas. É um esforço muito grande, mesmo para fugir à morte. E deve ser uma fortuna em pedágio. O servo precipitou-se.

Acabei por decidir o seguinte: introduzi Samarcanda no GPS e aceitei o destino. Depois desliguei o carro e voltei para casa. Na melhor das hipóteses, despistei a morte, que a esta hora está no Uzbequistão à minha procura. Na pior, ela não se deixa enganar.

Tudo bem, se a morte me quiser, que venha visitar-me em minha casa. Mas aviso já que não se divertirá muito, porque eu não tenho cerveja.

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