Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Cuidado com a língua

Não há dúvida de que o português nos causa problemas

Ingleses e franceses não sabem o que é quentinho nem devagarinho —e ninguém faz nada. Claro: eles sabem o que é quente e devagar. Mas quentinho e devagarinho é outra coisa, e passar pela vida sem saber a diferença parece-me inconcebível e cruel.

Ora, a ONU não lança um plano, não elabora uma convenção, não manda capacetes azuis armados com gramáticas de português à França, à Inglaterra, a todo o lado?

No capítulo 33 de "Dom Casmurro", antes de beijar Capitu, Bento faz-lhe umas tranças. Diz ele: "Não as fiz logo, assim depressa [...], mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos que eram parte dela." "Devagar, devagarinho", diz ali.

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

Se fosse a mesma coisa, o Machado não tinha escrito assim. Mas ingleses e franceses (e outros falantes de línguas bárbaras) nunca vestiram um casaco quentinho, nunca fizeram nada devagarinho. Pior: num dia de inverno, nunca ficaram no quentinho, até porque não fazem ideia de que quentinho também pode ser substantivo. Até quando, meu Deus?

Não há dúvida de que a nossa língua também nos causa problemas. Por exemplo, quando vamos a algum lado e uma pessoa nos diz: "Tenho muito gosto em recebê-lo". É problemático porque também é possível dizer: "Tenho todo o gosto em recebê-lo." Ora, entre muito gosto e todo o gosto vai uma distância de algum gosto que o nosso anfitrião, aparentemente, faz questão de nos dizer que não possui. Devemos então ficar ofendidos quando nos dizem apenas "tenho muito gosto em recebê-lo", em vez de "tenho todo o gosto em recebê-lo"? Da próxima vez que lhes disserem "tenho muito gosto em recebê-lo", façam a pergunta: "Só muito? Por que não todo?". De acordo com a minha experiência, esse é o início de um serão magnífico.

Acontece também nós agradecermos e alguém responder: "Eu é que agradeço". Como assim? É um agradecimento, uma reprimenda ou as duas coisas? A verdade é que estamos a ser corrigidos por um ganancioso que quer a boa educação só para ele. Ele é que agradece. Nós não.

Outro problema: muitas vezes, pedimos desculpa por acidentes —cuja culpa, evidentemente, não é nossa. É um erro, pelo que, quando o cometem, exijo que me peçam desculpa por me terem pedido indevidamente desculpa. Não sei se já disse, mas eu não tenho muitos amigos.

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