Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Nana, neném, sob ameaça de morte

Nosso método para adormecer crianças é bizarramente inadequado

Quando as crianças estão a dormir parecem mesmo anjinhos. Durante o resto do tempo é um pouco mais difícil detectar características angelicais —mas, quando estão a dormir, que querubins.

Os pais descansam um pouco, respiram fundo, às vezes ficam tão eufóricos que, durante esse período, acabam cometendo erros tais como conceber novas crianças.

Custa a entender, por isso, que o nosso método para adormecer crianças seja tão bizarramente inadequado. 

Isso parece atravessar todos os tempos e lugares. Gente de culturas diferentes não se entende sobre assuntos simples, tais como: que som faz o cão. 

Para os ingleses, o cão faz woof woof (mas também arf arf). Em Portugal, faz ão ão (mas também béu béu). Para os croatas e os húngaros faz vau vau, mas os indonésios ouvem guk guk. 

No entanto, todos esses povos acham boa ideia contar às crianças histórias de lobos ao deitar. Um lobo mau é primeira figura que ocorre a pais de todo o mundo para proporcionar aos filhos pequenos uma noite descansada.

Luiza Pannunzio/Folhapress

Sublinhamos que se trata de um lobo mau, não vão as crianças achar que, excepcionalmente, nessa noite o protagonista da história é um lobo com bons sentimentos. Não, não. É mau e está igualmente interessado em comer porquinhos e crianças —que, aparentemente, têm o mesmo sabor (o que não pode deixar de ser considerado um insulto, a juntar ao resto).

Para os falantes da língua portuguesa, ainda assim, isso não parece ser suficiente. Por isso, além das histórias assustadoras, juntamos canções com versos como: “Nana, neném, que a Cuca vem pegar”. Tradicionalmente, consideramos que o melhor modo de tranquilizar um bebê é dizer-lhe: dorme, pequenino, que uma criatura mitológica maligna vem te pegar. 

Certos pais preferem cantar o também calmante “Bicho papão, / sai de cima do telhado. / Deixa esse menino / dormir sossegado”. Se o pai da criança, na hora de deitar, se despedir da mãe dizendo “parece que vi dois ninjas na nossa janela, boa noite, querida”, isso é considerado uma pegadinha sinistra e estúpida. Mas comunicar a um bebê que há um bicho papão no telhado é uma sensata técnica ancestral para adormecê-lo.

Nem o nosso melhor amigo, o cão, entra nessas canções para ajudar, afugentando os bichos.

Provavelmente porque ninguém saberia que som ele iria fazer.

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