Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Polícia polida

Passaram a beber menos e a pensar mais o que é sempre desaconselhável

Antigamente era simples: os policiais eram duros, resolviam os problemas com os punhos ou com a pistola e quase sempre tratavam as mulheres por "boneca". No fim do dia sentavam-se no balcão do bar e pediam um uísque duplo. Creio que nunca vi um polícia beber um uísque que não fosse duplo.

Mas depois, infelizmente, os policiais começaram a beber menos e a pensar mais —o que é sempre desaconselhável.

Agora, é quase impossível ver um filme que não inclua esta cena: um detetive local está a investigar um crime, mas então chega um agente de uma força policial federal, que veste um terno mais caro mas não sabe nada.

Diz ele: "A partir de agora o caso passa para a nossa jurisdição". O primeiro protesta: "Não, não. É da minha jurisdição". O federal: "Não. É da nossa jurisdição. Tenho aqui alguns documentos que o provam. Veja aqui a assinatura de uma alta patente".

Ilustração de Luiza Pannunzio para Ricardo Araújo Pereira de 21.out.2018.
Luiza Pannunzio

Enquanto decorre essa desinteressante batalha burocrática, o bandido mata mais três pessoas.

Pode ser pior ainda quando os policiais são agentes do CSI. Eles gastam 20 minutos de episódio a recolher pelos com uma pinça, passam horas numa delegacia repugnantemente limpa a espreitar organismos num microscópio, levam uma tarde inteira a esfregar cotonetes em manchinhas de sêmen que brilham no escuro.

Têm conhecimentos de psicologia, física, química, botânica, biologia e anatomia. Designam os pássaros pelo nome científico, em latim.

Enquanto os espectadores de hoje acompanham com interesse as conversas sobre DNA e células epiteliais, eu estou a contorcer-me no sofá, à espera que um daqueles agentes dispa a bata e dê um tiro em alguém, nem que seja no médico legista. Tenho quase a certeza de que os bandidos do meu tempo não tinham DNA—e, se tinham, era um tipo de DNA que não era cagueta.

A única altura em que os novos policiais seviciam uma testemunha para obter informação é quando dissecam um escaravelho qualquer que estava entretido a debicar um cadáver. Essa polícia sensata é altamente nociva para as novas gerações. Não falta muito para ouvirmos este diálogo grotesco, entre dois garotos:

— Você quer brincar de polícia e ladrão?

— Quero. Deixa eu ir buscar os cotonetes.

— Não, espera. Isso é da minha jurisdição.

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