Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Mas sua filha gosta

Como é possível viver sem saber a diferença entre ser bêbado e estar bêbado?

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Dizem que um alemão chamado Link visitou Portugal no fim do século 18 e ali descobriu que nunca, em qualquer língua do mundo, tinha ouvido nada mais doce do que a expressão “minha menina”. 

Essa história deixa-me comovido. Até os ouvidos bárbaros de um alemão, habituados a um falar que tem a musicalidade de um lençol a ser rasgado pelas unhas de 30 gatos, são suficientemente sensíveis para perceberem a delicadeza de uma língua elegante, quando a ouvem. 

Talvez um estrangeiro já não tenha capacidade para entender que, entre a nossa língua e a dele, há uma diferença decisiva, que não me canso de salientar: nós distinguimos entre ser e estar. É por isso que, na canção “Língua”, Caetano Veloso diz: “Gosto de ser e de estar”. Parece um gosto simples, e no entanto falantes de outras línguas não podem tê-lo, trata-se de um privilégio que lhes é negado. 

Para ingleses e franceses, por exemplo, é tudo a mesma coisa. “To be” e “être” tanto significam ser como estar. Deixem que pergunte: como é possível viver desse jeito? Sem saber a diferença, não tão sutil assim, entre ser bêbado e estar bêbado? Uma coisa é dizer “és bonita”. Elogia, mas incentiva a uma perigosa acomodação. Bem diferente é dizer “estás bonita”. Também lisonjeia, mas deixa claro que se trata de um estado passageiro, que precisa de ser mantido.

A nossa língua também deve ser a única que permite sermos muito precisos e muito vagos ao mesmo tempo. Por exemplo, na queixa frequente “estou farto de certas e determinadas pessoas”. Essas pessoas são certas e determinadas, mas por outro lado continuamos sem ter a certeza de quem elas são, pelo que, na verdade, continuam incertas e indeterminadas. Ou seja, a gente desabafa em geral sem ofender em particular.

Quando, na última semana, Chico Buarque ganhou o Prêmio Camões, a mais importante distinção literária da língua portuguesa, voltei a ter pena dos estrangeiros.

Se eles ouvirem “Construção”, é provável que sintam que raras vezes ouviram alguma coisa tão bonita. Mas não entendem o que ele diz, e entendem menos ainda o modo como o diz.

Não vão reparar, por exemplo, que todas as últimas palavras de cada verso são proparoxítonas. Nem desconfiam que a própria palavra “proparoxítona” é uma palavra proparoxítona. Rezemos por eles, que bem precisam.

Ilustração
Luiza Pannunzio

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