Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Descrição de chapéu

O lirismo da Covid, apesar de inexistente, é buscado por poetas

Tenho assistido ao esforço inglório de encontrar poesia na terminologia médica da doença

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Oh, o lirismo da Covid! Apesar de inexistente, tem sido buscado por poetas amadores de todas as nacionalidades. Logo no início da pandemia, a atriz Gal Gadot arregimentou vários amigos famosos para que cantassem a música de John Lennon “Imagine”.

Cada um brutalizou um verso e o resultado final foi uma chacina de tal modo pantafaçuda que justificou largamente que sobre ela se usasse a palavra pantafaçuda, um raríssimo último recurso. A única coisa que imaginei, ao ouvir aquele “Imagine”, foi a comunidade científica a se empenhar com mais força ainda, na tentativa de encontrar uma vacina, só para evitar a proliferação de iniciativas
daquele gênero.

Em português, as almas mais líricas têm feito esforços notáveis. Primeiro, descobriram a excelente antítese “nesta altura, estarmos juntos significa estarmos afastados”, e a frase foi repetida com uma taxa de contágio superior à do vírus.

Ilustraçãode duas pessoas vestindo máscaras. No fundo, há um livro aberto que usa a altura da ilustração inteira
Luiza Pannunzio

Na internet descobri dois ou três vates que apostaram na linda aliteração “a covarde Covid” (juro). E tenho assistido ao esforço inglório de encontrar poesia na terminologia médica da doença e no prosaísmo da situação em que estamos.

Viemos para casa, o que não é especialmente heroico. Mesmo Camões, que cantava o esforço e a coragem de gente que se tinha deitado ao mar sem grande garantia de regresso, teve de inventar umas ninfas, juntar umas divindades gregas e fazer aparecer um gigante a meio da viagem, para ver se acrescentava epicidade à epopeia.

Nós estamos a lidar com achatamento de curvas, distanciamento social e etiqueta respiratória. É difícil encontrar alguma coisa mais chã do que o achatamento, mais fria que o distanciamento, mais burocrática do que a etiqueta.

Tudo matéria bastante comezinha, a juntar ao fato de, segundo o visconde de Castelões, no seu útil dicionário de rimas, Covid não rimar com muito mais do que ide, pevide e cabide. Camões, que era Camões (fica a informação), despachou o escorbuto em duas estrofes, no “Canto 5º”, e retomou a história dos heróis que, ajudados por deuses antigos, foram cometer feitos que cabiam mesmo à justa em decassílabos.

“Sentar no sofá” tem cinco sílabas. “Ver a Netflix” tem quatro. E não existe um deus grego do comando da televisão. É melhor ficar pela prosa.

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