Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Negar a minha natureza é um exercício que faço com proveito desde pequeno

Para mim, nada tem mais valor didático do que o impacto do punho do treinador de kickboxing no meu nariz

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Dizem que a federação de ginástica suíça resolveu investir forte na modalidade e contratou a melhor treinadora chinesa.

Passou um ano e as ginastas suíças continuaram longe do extraordinário desempenho das chinesas. Outro ano, e mais outro —e a ginástica suíça não evoluía como se esperava. Os responsáveis suíços chamaram a treinadora: “Que se passa? São as condições de treino?”. Ela: “Não, aqui tenho melhores condições do que na China”. Eles: “As nossas moças não têm talento?”. Ela: “Têm. Tanto ou mais talento do que as moças chinesas”. Eles: “Então qual é o problema?”. Ela: “É que aqui eu não lhes posso bater”.

Ilustração de homem em frente ao espelho de braços cruzados, seu reflexo mostra a língua para ele.
Luiza Pannunzio

Não consegui apurar se a história é verdadeira, mas concordo com a treinadora, seja ela real ou imaginária, quanto às ricas propriedades pedagógicas de um bom tapa na cara.

Antes que me acusem de crueldade, deixem-me dizer que só aprovo o método para meu caso pessoal. Outras pessoas terão facilidade em aprender de outro jeito. Eu sou particularmente sensível ao tapa.

Desde que comecei a praticar kickboxing, ficou muito claro que, para mim, nada tem mais valor didático do que o impacto do punho do treinador no meu nariz. O kickboxing obriga o praticante a negar a sua própria natureza. O primeiro instinto é fechar os olhos: não convém; dá vontade de virar as costas: as regras proíbem; apetece deitar no chão em posição fetal: é malvisto.

Negar a minha própria natureza é um exercício que faço com proveito desde pequeno. Os gurus da autoajuda recomendam o contrário: seja você mesmo. No meu caso, é um conselho idiota, como me parece óbvio. Se eu fosse o Shakespeare ou o Leonardo da Vinci, creio que valeria a pena tentar ser eu mesmo. Sendo eu, é ajuizado ter ambições mais elevadas e procurar ser outra pessoa melhor. Ser eu mesmo é manifestamente pouco.

Do mesmo modo, quando Jesus diz “ama o próximo como a ti mesmo”, está a esquecer-se de gente como eu, com uma autoestima tão baixa que, se eu amar os outros como a mim mesmo, acabo a execrar todo o mundo. Também tenho dificuldade em cumprir a regra “não faças aos outros o que não gostariam que te fizessem a ti”.

Parece estranho, mas muitas vezes —designadamente, e para dar apenas um exemplo, na cama—, é frequente exigirem que eu faça coisas que não gostaria que me fizessem a mim. E eu faço, pondo em causa todo o sistema moral do cristianismo. Nem todos conseguem derrubar milênios de civilização sem sair da cama.

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