Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Entidades míticas têm isso: sua demonstração prática raras vezes está à altura

A parte do Centauro que é homem talvez seja interessante, mas a parte que é cavalo vai acabar por ter de ir ao banheiro

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Eu tinha um amigo que militava num partido da esquerda dura portuguesa, a União Democrática Popular. Nas passeatas, ele gritava a palavra de ordem “UDP: sempre, sempre ao lado do povo” e depois acrescentava baixinho “mas nunca no meio dele”.

Creio que todo o mundo compreende a ressalva do meu amigo. Numa coisa, gente de esquerda e de direita concorda: a gente ama o povo. O hino português canta o “nobre povo”; o brasileiro elogia o “povo heroico”. O povo enquanto entidade mítica que sofre, se esforça em conjunto, ergue nações com o seu suor, é admirável.

Ilustração de pessoas fazendo gesto de arma com as mãos atrás de uma grade que vai até a cintura delas. No alto, a frase “"O povo no cercado"”
Luiza Pannunzio/Folhapress

A sua demonstração prática, que se aglomera em torno de acidentes para ver o sangue e vota massivamente em idiotas é mais difícil de amar. As entidades míticas têm isso: a sua demonstração prática raras vezes está à altura. Um centauro é admirável, mas não o queremos na nossa sala. A parte que é homem talvez seja interessante, mas a parte que é cavalo vai acabar por ter de ir ao banheiro. Não vai correr bem.

Mas há que respeitar (e até amar) o povo. Na medida certa, talvez. É por isso que aquele “mas nunca no meio dele”, dito entredentes, é precioso. É o antídoto do fanatismo —como as piadas costumam ser.

Os judeus contam a história do rabino que rezava: “Senhor, por sermos o teu povo escolhido temos enfrentado milênios de perseguições, exílios, pogroms, extermínio em massa. Por favor, senhor, escolhe outro povo agora.” Não há mal nenhum em amar Deus e, apesar disso, ter, digamos, uma opinião crítica do Seu trabalho. Talvez assim até o amor tenha mais valor.

Esse meu amigo era editor do primeiro jornal em que trabalhei. Nos dias de maior aperto, quando a conclusão da edição parecia impossível, ele dizia uma frase que tem sido o lema da minha vida: “Vamos! A vitória é difícil mas é deles”. Como todos sabemos, a frase original, que motiva e inspira, é: “A vitória é difícil mas é nossa”.

A do meu amigo parece-me muito melhor, por várias razões. Primeiro, tira-nos a responsabilidade de vencer, que é um peso difícil de suportar. Segundo, diz que a vitória dos outros será difícil, o que constitui uma pequena vingança agradável. Terceiro, não vende falsas esperanças: a vida é derrota, sim. Quarto, indica que, apesar da quase inevitabilidade da derrota, isso não é razão para perder o ânimo. Por último, e mais importante que tudo: dá vontade de rir a quem está preocupado. Essa é a vitória.

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