Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Como nos tornamos uma espécie que elogia álcoois-géis e injuria máscaras?

Espero que a vacina, além de rechaçar o vírus, contemple a eliminação das marcas que ele deixou na linguagem

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Um dos aspectos mais irritantes do novo normal é a quantidade de vezes que se ouve a expressão “novo normal”.

A Covid-19 afetou profundamente a nossa economia mas —pormenor muitas vezes negligenciado— também a nossa linguagem. Às vezes, dirijo-me a um estabelecimento comercial, estaciono o carro, e no momento em que vou entrar na loja constato que me esqueci da máscara no veículo.

Regresso então ao carro a insultar entredentes a máscara, juntamente com várias outras pessoas que,
pelo mesmo motivo, estão a regressar aos seus automóveis.

Até aqui, segundo me parece, reservávamos o insulto a objetos inanimados para peças de mobiliário em cuja esquina acertávamos com o pé descalço, ou martelos com os quais esmagávamos inadvertidamente falangetas.

Creio que é relativamente inédito insultarmos um objeto que, como acontece com a máscara, não nos infligiu dor e se limita a jazer no porta-luvas, a estúpida, bem caladinha, para que a gente se esqueça dela à ida para o supermercado e tenha de voltar atrás.

Outra conversa que nunca imaginávamos ter é a análise e avaliação de álcoois-géis. Antes de mais, deixem-me tranquilizar toda a gente: fui verificar e a palavra álcoois-géis está certa. É um daqueles felizes acasos em que a correção gramatical e a aparência de tolice coincidem.

O certo é que, neste momento, cada um de nós é um sommelier de álcool-gel. Sabemos que lojas disponibilizam os melhores álcoois-géis, preferimos os mais alcoólicos aos enjoativamente frutados, os mais líquidos aos espessos e gordurosos, que deixam nas mãos uma gosma que só sai em casa, quando se toma banho ou lava as mãos.

Bem sei que todo este tempo dedicado a apreciar álcoois-géis não era antigamente aplicado a discutir literatura e filosofia, mas lastimo as horas que isso rouba até ao debate sobre futebol. Como é que nos tornamos uma espécie que injuria máscaras e elogia álcoois-géis?

Espero que a vacina, além de rechaçar o vírus, contemple a eliminação das marcas que ele deixou na linguagem. Creio que não é pedir demais: desejo um futuro melhor em que os meus netos não sejam obrigados a articular a palavra álcoois-géis.

Pessoa usando máscara descartável com um borrifador na mão. Há um balde, um rodo e uma embalagem de produto de limpeza perto dela
Luiza Pannunzio/Folhapress

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