Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Parece que o riso está retomando uma certa má reputação que já teve

Só quando se entende o humor como uma agressão é que rir de alguém pode parecer impróprio

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Há, acerca do riso, dois lugares-comuns que as pessoas costumam subscrever com igual veemência, embora um seja a negação do outro.

O primeiro diz que só é admissível rir com os outros e que é eticamente reprovável rir de alguém. O segundo diz que é fundamental sabermos rir de nós próprios. Concordo com o segundo, pelo que discordo do primeiro.

Em certos casos, o que me parece flagrantemente imoral é rir com alguém. Por exemplo, quando Bolsonaro diz que uma jornalista brasileira de ascendência japonesa devia ir para o Japão, rir dele é praticamente um dever. E rir com ele, integrando-o na brincadeira, uma indecência.

Quatro políticos, Bolsonaro entre eles, conversando animadamente e se abraçando; manchas amarelas e verdes saem de suas bocas
Luiza Pannunzio/Folhapress

Mas não precisa ser Bolsonaro. Em geral, parece-me muito saudável que uma sociedade possa rir dos seus dirigentes. Só quando se entende o riso como uma agressão, ou como nada mais do que uma agressão, é que rir de alguém ou de alguma ideia pode parecer impróprio.

No entanto, parece que o riso vai retomando uma certa má reputação que já teve (e talvez nunca tenha deixado de ter completamente). A direita, sobretudo a direita religiosa, nunca teve grande sentido de humor. E ninguém se espantou quando a administração Trump acabou com uma tradição de anos e deixou de convidar um humorista para a cerimônia do jantar dos correspondentes.

Eu fui educado em colégios de padres e conheço a conversa: graças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhumas. Mas agora ouço a ladainha da boca de outros sacerdotes, e a propósito de outros deuses.

Na última vez que Ricky Gervais apresentou o Globo de Ouro aconteceu um fenômeno curioso. Ele escarneceu de algumas das pessoas mais famosas e mais ricas do planeta.

A certa altura, dirigindo-se ao presidente da Apple, falou do contraste entre a boa consciência das séries que a empresa produz para televisão e da prática da mesma empresa em países do Oriente, onde os seus produtos são montados nas chamadas sweatshops, sem qualquer respeito pelos direitos dos trabalhadores. Teve graça, porque a hipocrisia nunca deixa de ser engraçada.

No dia seguinte, várias pessoas, muitas delas de direita, escreveram a aplaudir a sátira de Gervais aos ricos e poderosos. E outras tantas pessoas, muitas delas de esquerda, criticaram o apresentador por ser desagradável e malcriado.

Não sei o que está a acontecer, mas não me dá vontade de rir.

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