Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Minha gata é um punk aburguesado, um Johnny Rotten com champanhe

Ela nasceu para ser rica e creio que me considera um subordinado incompetente

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Às vezes, a minha gata está a comer as delicadas refeições de gato grã-fino que eu lhe compro e, quando morde a comida, sacode a cabeça com violência, como se estivesse a dilacerar a carcaça de uma presa que caçou.

Julgo que o faz para se convencer de que continua a ser um bicho selvagem e perigoso, apesar de estar a saborear os filetes de atum com gelatina de camarão da Purina Gourmet num prato de porcelana. Ela é um punk aburguesado. Johnny Rotten bebericando champanhe.

Não haveria mal nenhum nisso, mas aquele sacudir de cabeça indica que ela está a fingir ser outra coisa. Em princípio, ninguém é ridículo sendo o que é. Quando fingimos ser outra coisa é que o ridículo nos apanha.

Ilustração de um gato preto tentando alcançar um brinquedo com formato de peixe que está pendurado por um fio acima dele.
Luiza Pannunzio/Folhapress

Apesar de eu a ter apanhado na rua quando era pequena, ela podia agora ser uma gata grã-fina e ninguém sonharia fazer objeções.

Ser grã-fino é o destino do gato. Gatos da rua parecem sempre aristocratas caídos em desgraça, enquanto cães de casa parecem vagabundos que tiveram a sorte de ascender socialmente.

Sempre que os meus boxers vão beber água, na sua bonita tigela propositadamente comprada para o efeito, é preciso limpar o chão num raio de dez metros.

A linda cama de veludo fofo que eu lhes dou aparece periodicamente estraçalhada, porque eles não resistem a rasgá-la para ver o que tem dentro, e depois têm de se deitar no chão até eu comprar outra.

Mas a gata nasceu para ser rica. Tem a arrogância distante de uma fidalga do século 19. Quando convalescia da operação em que o veterinário lhe colocou uma bacia de titânio, depois de ter sido atropelada, ficou muito minha amiga.

Assim que recuperou a saúde plena, voltou a tratar-me como um lacaio. Nenhum gesto de agradecimento por ter sido salva, nem o mínimo sinal de arrependimento por ter fugido para o meio da estrada.

Continua a dedicar a vida a tentar escapar para o jardim, e daí para a rua. Tolera, com muito enfado, que eu cuide das suas necessidades. Creio que me considera um subordinado muito incompetente.

Mas, quando eu reparei que ela fingia ser uma leoa brava enquanto comia iguarias de gatinho doméstico, julgo que até ela sentiu uma pontinha de humilhação. Durante três segundos. Depois disso, retomou a altivez desdenhosa.

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