É verdade, soube há dias: as moscas zumbem em fá. Não sei o que foi que a descoberta fez em mim, mas sou agora outra pessoa. As moscas, todas as moscas, quando voam, produzem a nota musical fá.
Talvez seja a melhor maneira de nos apresentarmos a um viajante intergaláctico: eu nasci num mundo em que as moscas zumbem em fá.
Sinto que não partilham ainda o meu orgulho. Tem-me acontecido muito haver pessoas que não se entusiasmam tanto com essa informação quanto eu. É o seguinte: eu fico comovido com o
cuidado que foi posto na criação do mundo, a minúcia com que a obra foi feita. Alguém ou alguma coisa se dedicou a pormenores como este. Com ou sem palavras, terá ocorrido uma conversa parecida com a seguinte.
“Ah, e este mundo vai ter também moscas.”
“Naturalmente. Em que nota deseja que elas zumbam?”
“Boa pergunta. Experimente um si.”
“Com certeza.”
“Não, espere. Vamos pô-las a zumbir em fá.”
“Excelente escolha.”
Foi preciso criar a mosca, depois aproximar dela uma espécie de diapasão primordial, afinar a mosca, garantir que zumbia em fá, e só depois deixá-la ir. E continuar a fazer o mesmo com todas as moscas. Talvez ao mesmo tempo, com todos os milhares de milhões de moscas
que nascem a cada segundo.
“Você aí, o 19.052º a contar da esquerda, na 24.089.712ª fila: está a zumbir em mi. É em fá.”
“Peço desculpa, pensei que havia espaço para improviso.”
“Não, isto não é jazz. Vamos seguir rigorosamente o plano. Olhem para a partitura. É fá.”
Mas não é tudo. Para que nós saibamos que as moscas zumbem em fá não basta que elas tenham sido criadas a zumbir em fá. Foi preciso que alguém tivesse suspeitado que as moscas zumbiam numa
determinada nota e tivesse considerado boa ideia ir investigar que nota seria essa.
Foi desse esforço conjunto que nasceu essa certeza que temos hoje: as moscas zumbem em fá. E o que isso significa, o que nos diz sobre o mundo, sobre o esmero com que foi feito e o rigor milimétrico com que tudo existe, traz-nos algum consolo.
E, ao mesmo tempo, se as coisas batem absolutamente certo a este ponto, faz-me perguntar por que é que o meu joelho direito estala sempre que subo uma escada. E, claro, em que nota será que estala?
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