Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Soube há dias: eu nasci num mundo em que as moscas zumbem em fá

Há pessoas que não se entusiasmam tanto com essa informação quanto eu

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É verdade, soube há dias: as moscas zumbem em fá. Não sei o que foi que a descoberta fez em mim, mas sou agora outra pessoa. As moscas, todas as moscas, quando voam, produzem a nota musical fá.

Talvez seja a melhor maneira de nos apresentarmos a um viajante intergaláctico: eu nasci num mundo em que as moscas zumbem em fá.

Sinto que não partilham ainda o meu orgulho. Tem-me acontecido muito haver pessoas que não se entusiasmam tanto com essa informação quanto eu. É o seguinte: eu fico comovido com o
cuidado que foi posto na criação do mundo, a minúcia com que a obra foi feita. Alguém ou alguma coisa se dedicou a pormenores como este. Com ou sem palavras, terá ocorrido uma conversa parecida com a seguinte.

Ilustração com uma Clave de Fá ocupando a maior parte da área. Logo abaixo, há uma mosca em cima das linhas de uma partitura acompanhada de um 'Fá', que está destacado em azul. Um sinal de Semibreve em cima de um 'Mi' está antes da mosca e outro Semibreve, que aparece cortado pela margem direita da imagem, aparece depois, seguido por um 'S', que também é cortado pelo limite da margem.
Luiza Pannunzio/Folhapress

“Ah, e este mundo vai ter também moscas.”

“Naturalmente. Em que nota deseja que elas zumbam?”

“Boa pergunta. Experimente um si.”

“Com certeza.”

“Não, espere. Vamos pô-las a zumbir em fá.”

“Excelente escolha.”

Foi preciso criar a mosca, depois aproximar dela uma espécie de diapasão primordial, afinar a mosca, garantir que zumbia em fá, e só depois deixá-la ir. E continuar a fazer o mesmo com todas as moscas. Talvez ao mesmo tempo, com todos os milhares de milhões de moscas
que nascem a cada segundo.

“Você aí, o 19.052º a contar da esquerda, na 24.089.712ª fila: está a zumbir em mi. É em fá.”

“Peço desculpa, pensei que havia espaço para improviso.”

“Não, isto não é jazz. Vamos seguir rigorosamente o plano. Olhem para a partitura. É fá.”

Mas não é tudo. Para que nós saibamos que as moscas zumbem em fá não basta que elas tenham sido criadas a zumbir em fá. Foi preciso que alguém tivesse suspeitado que as moscas zumbiam numa
determinada nota e tivesse considerado boa ideia ir investigar que nota seria essa.

Foi desse esforço conjunto que nasceu essa certeza que temos hoje: as moscas zumbem em fá. E o que isso significa, o que nos diz sobre o mundo, sobre o esmero com que foi feito e o rigor milimétrico com que tudo existe, traz-nos algum consolo.

E, ao mesmo tempo, se as coisas batem absolutamente certo a este ponto, faz-me perguntar por que é que o meu joelho direito estala sempre que subo uma escada. E, claro, em que nota será que estala?

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