Foi assim: primeiro, a Flor fugiu para a serra com o cão do vizinho, mas todo mundo dizia que ele era castrado. O cão, não o vizinho. Era um malcheiroso de pelo castanho. O vizinho, não o cão. O cão era lindo.
Seja como for, a Flor começou a engordar muito e eu a levei ao veterinário. Tinha seis cachorrinhos no ventre. Ou o cão do vizinho não era castrado ou estava prestes a nascer o messias dos cães.
Meses depois, a Flor deu à luz cinco cachorrinhos adoráveis e um bicho malvado. Os cachorrinhos queriam mamar e o bicho os empurrava para ficar com as tetas só para ele. Os cachorrinhos dormiam e o bicho roía a cama.
Rapidamente, o bicho passou a ser designado por "o Demônio". Quem lhe deu o nome foi, evidentemente, o próprio. E, quando foi altura de oferecer os cachorrinhos, resolvemos ficar com ele. A sua indisciplina boba já nos tinha conquistado.
E depois passaram anos e o Demônio —embora mais frequentemente chamado de Demoninho ou Monuchas—, continuou a ser um demônio. Sempre gostou muito de comer. Infelizmente, nem sempre era comida.
A sua predileção por roupa suja o levou várias vezes ao veterinário. Mais do que uma vez foi preciso operá-lo para lhe retirar meias e cuecas do bucho. Mas também comia outras coisas.
Recordo, em particular, o dia em que dedicou uma tarde a comer parte do livro "Teoria Artística em Itália, De 1450 a 1600", de Anthony Blunt.
Ingeriu integralmente os capítulos seis, sete, oito, nove, bem como a bibliografia e o índice. Mas comeu apenas a metade superior dos capítulos dedicados a Alberti, Da Vinci e ao próprio Michelangelo.
Não deixa de ser irônico, contudo, que um dos capítulos destruídos pelo Demônio tenha sido aquele que o autor dedicou a Savonarola, o padre conhecido precisamente por destruir objetos artísticos. Creio que somos todos sensíveis a esta sutileza.
Entretanto, o Demônio foi atacado por um tumor maligno e o veterinário teve de amputar uma das suas patas da frente, mas ele manteve a alegria e o vigor.
Hoje já esteve a correr atrás de pombos e agora está aqui, deitado aos meus pés, e tenho a certeza de que, se soubesse que tinha sido transformado em tema de crônica, gostaria de vê-la publicada. E, claro, de comê-la.
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