Enquanto percorre o país das maravilhas, Alice espanta-se várias vezes: "how queer"! Que estranho, quer ela dizer. Ou até mesmo: que anormal. Era esse o sentido que a palavra tinha no século 19. E foi com esse sentido que o termo serviu para designar depreciativamente os homossexuais, mais tarde.
Acontece que os homossexuais desse tempo sabiam que nós não controlamos o que os outros dizem. Mas controlamos o que dizemos. E, com isso, podemos mudar qualquer coisa, incluindo o discurso dos outros.
Podemos até esvaziar uma agressão. Foi o que a comunidade homossexual fez com a palavra "queer". Era um insulto. Hoje é um brasão. Designa, por exemplo, uma área de estudos: queer studies. Os homofóbicos até podiam continuar a usar a palavra com más intenções. Mas ela já não agredia. Tinha sido descarregada, como se faz com uma arma.
Às vezes, é o tempo que retira a munição à palavra. Por exemplo, se eu disser que determinado acontecimento é sinistro, nenhum canhoto se ofende. E, no entanto, etimologicamente o vocábulo remete para a esquerda, para a mão esquerda, e significa funesto, desgraçado, pérfido.
Curiosamente, muito longe dos tempos em que os canhotos eram perseguidos e identificados com o diabo, hoje a palavra sinistro até pode significar, no Brasil, excelente. Investigar a origem etimológica das palavras é interessante; fazê-lo com a intenção de as recarregar com a munição que em tempos tiveram mas foram perdendo é um pouco absurdo. Ninguém recusa treinar numa esteira, na academia, apesar de o objeto ter começado por ser um instrumento de tortura, nas prisões.
Há dias, a Defensoria Pública da Bahia resolveu lançar um glossário de "expressões racistas do cotidiano", sugerindo que fossem abolidas da linguagem de todos os dias várias palavras que têm uma conotação racista devido à sua origem. Era o caso de "criado-mudo", "a dar com pau", ou "meia tigela".
O problema é que nenhuma daquelas expressões tem, segundo quem estuda etimologia, a origem iníqua indicada pela Defensoria. Há uma tal volúpia em exibir superioridade moral fiscalizando o discurso dos outros que até se inventam motivos para patrulhar.
Como se não houvesse já racismo suficiente no mundo, alguém ainda se dá ao trabalho de forjar racismo semântico imaginário. Receio que acabemos enforcando os dicionários todos, à cautela.
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