Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Contra 'Com Açúcar, com Afeto', a palavra de ordem é jogar pedra no contexto

Agora que Chico Buarque vai parar de cantar a música, a disparidade salarial de gênero deve acabar em breve

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Chico Buarque vai deixar de cantar a canção "Com Açúcar, com Afeto" porque, diz ele, "as feministas têm razão". Finalmente! Não se admirem se, dentro de duas semanas, a disparidade salarial de gênero tiver terminado. Creio que estão finalmente reunidas condições para termos uma sociedade mais justa.

Aquelas notas musicais estavam impedindo o progresso —e o poema, então, nem se fala. "Com Açúcar, com Afeto", gerava desigualdade —e diabetes tipo dois também, provavelmente.

Ilustração de uma mão segurando uma pedra
Publicada neste sábado, 5 de fevereiro de 2022 - Luiza Pannunzio

Por azar, Chico não nomeou as feministas que têm razão, o que é pena. Não sabemos se se refere à turma da Germaine Greer ou à da Catharine MacKinnon, à da Nancy Fraser ou à da Judith Butler, à da Nadine Strossen ou à da Andrea Dworkin.

Sabendo que há vários tipos diferentes de feminismo, eu ficava mais descansado se me dissessem qual é o que "tem razão". E também não sabemos ao certo em que é que essas feministas têm razão. Sabemos apenas que o fato de terem razão leva a que uma canção deixe de ser cantada pelo seu autor.

Hesito em refletir um pouco sobre a música porque a pouca-vergonha é tal que receio anular, citando os versos malignos, o benefício obtido por eles não voltarem a ser cantados por Chico Buarque. Com medo, vou arriscar. Preparem-se.

É uma canção em que uma voz feminina diz estar em casa, triste, esperando o marido, que leva uma vida vagamente boêmia. Quando ele volta para casa, ela recebe-o, escuta as suas promessas vãs e aquece-lhe o jantar. Como é que um eu poético tem a desfaçatez de dizer isto, e logo em verso, numa música? Há eus poéticos que deviam ter mais juízo. Se uma mulher assim existe, não devia existir. E o primeiro passo para que não exista é deixar de ser cantada.

Há quem diga que o contexto em que uma coisa é dita muda aquilo que é dito. Que, por exemplo, certas coisas que não são problemáticas quando as dizemos na cama seriam ameaçadoras e muito ofensivas à mesa. Ou que as palavras que um autor põe na boca de uma personagem não refletem a sua visão do mundo.

Mas as pessoas que chamam a atenção para essas minúcias não devem ser feministas. Ou, sendo, não são das que têm razão. Em vez de "joga pedra na Geni" —também ele, aliás, um apelo bastante danoso— eu digo joga pedra no contexto.

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