Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu
dinossauro

A água que nos mata a sede hoje pode ter banhado os genitais de Napoleão

Não há como amar a natureza após saber que ela me oferece um coquetel de esgoto antigo, urina velha e riacho sujo

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Escutem o que diz Giulio Boccaletti, da Universidade de Oxford, e depois digam que é má vontade minha. O autor do livro "Água: Uma Biografia", afirma: a água que hoje bebemos já passou pelos rins de um dinossauro.

É isto, amantes da natureza, o que a natureza tem para nos oferecer. Sempre a mesma água, do início dos tempos até hoje. Evapora, condensa, precipita. Evapora, condensa, precipita. Às vezes a gente protesta num bar se nos dão um copo sujo. A natureza anda a servir a mesma água há milênios e ai de quem a critique, porque a natureza é muito bela.

Será, mas asseada não é. Estamos a beber águas que se evaporaram no passado. O copo de água fresquinho que nos mata a sede hoje pode ter banhado os genitais de Napoleão há 250 anos. A linda cascata que nos encanta agora foi, muito provavelmente, urina de uma vaca do século 19, e já tinha sido um charco fétido na Idade Média.

No desenho de Luiza Pannunzio, há um dinossauro verde com listras pretas por todo corpo, de pescoço e cauda tão longas - que quase alcançam duas nuvens pretas, densas de chuva que do topo do desenho, deságuam de gota em gota por todo espaço. O dinossauro usa um óculos de sol e mantém a boca aberta para hidratar-se com a chuva. Tem braços curtinhos e segura na mão esquerda uma garrafa de inox de água - daquelas que prometem manter a temperatura do líquido contido por horas e que - parece ser hoje em dia, um equipamento indispensável a quem deseja salvar o planeta.  A chuva satisfaz o dinossauro que caminha com alegria - salivando, transpirando, sob um solo encharcado de água e urina - logo a evaporar
Ilustração publicada em 22 de abril - Luiza Pannunzio

Eu não acredito na reencarnação, exceto na da água. É reenaguação. E pedem-me que ame a natureza. Ninguém que eu amo me ofereceria um coquetel de esgoto antigo, urina velha e riacho sujo.

Devemos respeitar a natureza, não há dúvida. Mas também não custava que a natureza nos respeitasse de volta.

E não me façam falar sobre o movimento de rotação da Terra. A translação ainda se tolera. A rotação parece-me um excesso de ornamento brega. Sempre a andar à roda. Para quê? É um planeta ou um carrossel?

Outra: certas tartarugas respiram pela bunda. Que interesse tem isso? Terá valido a pena aplicar complexos recursos de engenharia biológica para obter esse efeito? Essa espécie particular de tartaruga está em vias de extinção. As que respiram pelo nariz, curiosamente, vivem bastante.

Nós também temos culpa, claro. Não sabemos interpretar as idiossincrasias da natureza. Sabem quantas pessoas morrem por ano por causa de veados? Cerca de 200. Eles vêem um carro e param, provocando acidentes mortais.

Quantas pessoas morrem por ano por causa de cobras? Cinco e meia. Devíamos ter pesadelos com o Bambi, não com os animais responsáveis pela morte de apenas cinco pessoas e meia. Àquela meia pessoa que elas matam, provavelmente as cobras estão fazendo um favor. Sobretudo se ela for só a metade de baixo.

Tudo isto me deixa tão enervado que eu deveria beber um chá, para acalmar. Mas, tendo em conta o que a água é, só me irritaria mais.

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