Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Além dos entes queridos, por que não falamos dos menos estimados?

Podemos inventar frases novas e frescas sem valor, mas há outras batidas e mais interessantes

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A garoupa sorumbática vestiu as calças de flanela turquesa. É bastante improvável que esta frase tenha alguma vez sido escrita na língua portuguesa —ou em qualquer outra, na verdade.

Quem escreve procura fugir do que outras pessoas disseram antes e, portanto, é boa ideia começar um texto assim. Claro, também é conveniente que a frase faça sentido. E esta, sendo inédita, tem o problema de ser absurda.

No desenho de Luiza Pannunzio um homem branco segura uma enorme coroa de flores multicoloridas que ocupa da cintura até bem acima da cabeça, cobrindo toda esta parte de seu corpo. A faixa tradicionalmente transversal da coroa tem a frase: "AOS QUERIDOS ENTES QUERIDOS..." O homem usa calça social e tênis.
Ilustração publicada em 16 de julho de 2022 - Luiza Pannunzio

As garoupas são incapazes de vestir calças. Não há dúvida de que existem garoupas sorumbáticas. Creio mesmo que todas as garoupas que já conheci eram sorumbáticas. No mínimo, estavam longe de ser joviais. Mais uma razão, aliás, para não estarem na disposição de vestir um par de calças turquesa.

Resumindo, a frase é nova e fresca, mas sem valor. Outras frases são batidas, mas interessantes. "O Pai dos Burros", de Humberto Werneck, um utilíssimo dicionário de lugares-comuns e frases feitas, contém inúmeras. São expressões que se tornaram habituais e que por isso usamos sem pensar —e, no entanto, vale a pena pensar nelas.

Por exemplo, na letra "E", no verbete dedicado à palavra "ente", lá está (como certamente adivinharam) "ente querido". Os entes queridos são, de fato, os únicos entes de que se fala. É com eles que jantamos, no Natal, queremos trabalhar menos para passar mais tempo na sua companhia e, infelizmente, vamos ao seu funeral.

Mas a designação "entes queridos" pressupõe a existência de outros entes, que prezamos menos —ou nada. Esses até são, forçosamente, em maior número. Só que, por uma razão misteriosa, nunca são referidos. Proponho que passem a ser.

Com quem foste almoçar? Com alguns entes indiferentes, do trabalho. Quem vai jogar no gol, na pelada de logo à noite? Um ente vizinho do meu cunhado. Todos esses entes merecem ser nomeados —até para valorizarem, por contraste, os entes queridos.

Travamos conhecimento com vários entes e, com o tempo, alguns deles podem tornar-se entes queridos. Outros entes manter-se-ão menos estimados. E outros ainda acabarão por ser entes abominados. Ficando, ainda assim, hierarquicamente acima dos inimigos. Que, fatalmente, serão figadais.

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