No fatídico domingo, dia 15, em que Jair Bolsonaro furou o isolamento para saudar os que protestavam contra Congresso, STF e imprensa, o presidente do Peru, Martín Vizcarra, tomou uma decisão histórica.
Pela primeira vez desde a guerra civil contra o Sendero Luminoso, todo território peruano foi colocado sob estado de emergência.
Escolas e fronteiras fechadas, quarentena à população, apenas serviços essenciais abertos.
Vizcarra foi à TV falar de cifras de contaminação, diretrizes da OMS e do “dever de proteger os mais vulneráveis”.
Bolsonaro gastou o dia tuitando imagens de multidões nas ruas. À época, o Brasil tinha quase o dobro de casos confirmados de Covid-19.
Nesta semana, quando Bolsonaro fez um pronunciamento pedindo a reabertura das escolas, argentinos completavam quatro dias sob a quarentena “preventiva e compulsória” imposta pelo presidente Alberto Fernández.
Quem estiver à toa na rua, avisou Fernández, será processado criminalmente pelo Estado.
“Em algum momento, esse povo [brasileiro] terá de fazer uma autocrítica sobre o governante que elegeu”, disse um apresentador do Canal 5 da TV argentina, depois de descrever Bolsonaro com palavras, digamos, pouco lisonjeiras.
Até o mês passado, Vizcarra e Fernández pareciam animais políticos de filos completamente distintos.
O peruano é um ex-governador, de centro-direita, quase sem partido. Como vice-presidente, viu o poder cair no seu colo quando o caso Odebrecht fulminou Pedro Pablo Kuczynski.
O argentino só havia sido eleito vereador, até ser içado à Presidência pela máquina peronista e, sobretudo, por Cristina Kirchner, sua vice e eminência parda do governo.
Fernández é um enigma ideológico, amarrado a grupos da esquerda kirchnerista e acossado pelo risco de novo default.
Subitamente, a Covid-19 reorganizou o mundo –e a nossa região– com base em uma nova tipologia política, que se sobrepõe às categorias de antes.
Esquerda ou direita, governos que prezam pela ciência e pela vida humana estão respondendo à crise de forma semelhante: confinamento mandatório e, desde o primeiro momento, planos massivos de auxílio financeiro.
Duas semanas antes de o Congresso brasileiro assumir a iniciativa, Vizcarra já anunciara um programa de renda mínima a quase 10% dos peruanos.
E, do outro lado, há o terraplanismo sanitário, econômico e político de líderes como Bolsonaro. Com ele, figura o mexicano Andrés Manuel López Obrador, que exorta concidadãos a se abraçarem.
Juntos no negacionismo, Bolsonaro é da ultradireita; AMLO, um nacionalista associado à esquerda.
Philip Stephens, do Financial Times, defendeu que “a atual geração de líderes políticos será julgada pela forma como enfrentará a pandemia”, e não por sua coloração política.
Na América Latina, o julgamento já começou.
Em cerca de uma semana, o apoio a Vizcarra saltou 35 pontos e hoje está em 87% –feito especialmente impressionante no Peru, onde a piada é que a aprovação de presidentes costuma ser menor do que as taxas de crescimento do PIB.
Na Argentina polarizada entre kirchneristas e macristas, o respaldo a Fernández subiu da casa dos 55% a 79%.
Enquanto isso, no Brasil, as panelas batem, governadores de diferentes partidos viraram força de oposição e grupos da base bolsonarista –como militares e ruralistas– começam a perguntar pela saída de emergência.
O temor de que a recessão global alimente ainda mais formas de populismo e antipolítica faz sentido.
Foi esse, afinal, o legado da crise de 2008. Entretanto, na América Latina do início da pandemia, o campo oposto –seja esquerda ou direita– parece politicamente bem mais saudável.
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