Um mês e meio antes da eleição presidencial americana de 1976, a revista Playboy dos EUA publicou uma longa entrevista com o democrata Jimmy Carter.
Em um trecho, o candidato –que derrotaria o presidente Gerald Ford– abordou o Brasil. A camaradagem do governo Ford com Brasília era “o tipo de coisa que nós queremos mudar”, avisou Carter.
O Brasil, afinal, era uma ditadura “em muitos aspectos, altamente repressiva”, e a política externa de Washington não deveria trair valores americanos “em troca de vantagens temporárias”.
Em seis meses de governo Carter, Brasil e EUA viveriam a pior crise na história da relação bilateral. A questão dos direitos humanos era uma das duas pernas do problema. A outra era o programa nuclear brasileiro, que avançava rumo ao controle completo do ciclo do átomo.
O governo Carter espezinhou ditaduras sul-americanas e melou parte do acordo nuclear do Brasil com a Alemanha. Em retaliação, a ditadura suspendeu praticamente toda colaboração militar com os EUA.
Caso Joe Biden vença em novembro, quais são as chances de um “cenário Carter” nas relações dos EUA com o Brasil de Jair Bolsonaro?
Três meses de campanha numa pandemia equivalem a três décadas, e Donald Trump está ainda longe da derrota. Mas essa pergunta continuará a ganhar força daqui para frente.
Há quem acredite que um choque frontal entre Biden e Bolsonaro seria inevitável. Uma análise fria, porém, aponta o contrário: um antagonismo profundo parece improvável, pelo menos na fase inicial de uma administração democrata.
Primeiro, porque Biden teria mais o que fazer. Ele entraria na Casa Branca sobre os escombros deixados por quatro anos de Trump, em meio à pior crise da economia global em um século e enquanto a disputa com a China alcança níveis inéditos.
De um lado, o Brasil estaria relegado a um lugar secundário nessa agenda externa. De outro, ela reforçaria a importância de se evitar uma dor de cabeça com Brasília.
Da competição global pela tecnologia 5G à recuperação latino-americana pós-pandemia, seria muito melhor a Biden encontrar um modus vivendi com Brasília.
Ao mesmo tempo, o currículo de Biden indica que ele, pessoalmente, é um pragmático convencido da importância da relação com o Brasil.
Com Dilma Rousseff no poder, foi o então vice-presidente americano quem liderou o plano de reconstrução dos laços bilaterais —fracassado em razão do caso Edward Snowden e de outros desencontros.
Mas Biden realmente tentou e deixou um legado. Por exemplo, pontos do atual entendimento comercial entre Trump e Bolsonaro foram originalmente ideia sua.
Sobretudo, se o democrata vencer, sua posição inicial será reativa. A bola estará no campo do governo brasileiro. E é nesse ponto que as águas se tornam mais turvas.
Bolsonaro não parece ter entendido inteiramente a lição com a Argentina, onde fez campanha aberta para o derrotado Mauricio Macri. Hoje a relação com Buenos Aires é a pior em décadas.
“Torço pelo Trump”, soltou na semana passada, quando a vantagem de Biden na Flórida alcançou dois dígitos, ainda que tenha prometido trabalhar com Washington “se o outro lado ganhar”.
Um "cenário Carter" é improvável, mas ele certamente é possível. Para a esquerda democrata, a questão ambiental é hoje o que os direitos humanos representavam nos anos 1970.
Figuras como Ted Kennedy faziam campanha contra a tortura nos porões da ditadura, como os defensores do Green New Deal denunciam o desmatamento na Amazônia.
É difícil saber como seria o equilíbrio de forças entre progressistas e moderados sob Biden. Mas diante de uma piora da questão ambiental, ou se Bolsonaro tentar alguma maracutaia institucional, uma crise com o Brasil se tornaria incontornável –e talvez uma oportunidade para o democrata unir sua base.
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