Roberto Simon

É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard

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Roberto Simon

Mito da Nova Guerra Fria é nocivo ao Brasil

Analogia esconde o que está em jogo a Brasília no duelo EUA-China

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Estamos diante de uma Guerra Fria entre EUA e China? Longe de ser um mero exercício teórico, essa pergunta definirá os cálculos estratégicos de todos os países —incluindo o Brasil— nas próximas décadas. A depender da resposta em Brasília, os caminhos que se abrem à nossa relação com o mundo levam a lugares distintos.

Os que falam em nova Guerra Fria referem-se à ideia de um antagonismo, em escala global, entre duas superpotências. De fato, a disputa entre China e EUA já se alastrou a todos os continentes e temas da agenda global —do mar do Sul da China ao futuro do TikTok.

Mas a Guerra Fria do século 20 foi muito mais do que o choque entre as duas nações mais poderosas da época. E a analogia histórica “mais confunde do que explica” os desafios da atualidade, aponta Odd Arne Westad, um dos maiores historiadores do período.

Trump conversa com Xi Jinping com as bandeiras dos dois países ao fundo.
O presidente dos EUA, Donald Trump, conversa com o líder chinês Xi Jinping na cúpula do G20 em Osaka, Japão - Kevin Lamarque - 29.jun.2019/Reuters

O sistema internacional que perdurou do fim dos anos 1940 a 1991 tinha duas características basilares. A primeira era o duelo entre ideologias universalistas e antitéticas: comunismo e capitalismo. O leninismo soviético acreditava que seu triunfo dependia da destruição completa (e inevitável) do sistema capitalista.

O confronto ideológico permitia às superpotências apenas compromissos relativos, temporários. Ao final, prevaleceria um jogo de soma zero —uma derrota soviética era uma vitória americana, e vice-versa.

Há quem veja na China de Xi Jinping um projeto internacionalista, como se Pequim quisesse exportar uma ideologia mundo afora. É essa a convicção de parte do governo Bolsonaro, a começar pela cúpula do Itamaraty. E, se o embate EUA-China é um confronto entre modelos políticos, o Brasil —uma democracia de livre-mercado— inevitavelmente tem lado: Washington.

Essa interpretação, porém, viola os fatos. A China tem um capitalismo de Estado, e sua força motriz no plano global não é um projeto internacionalista, mas o nacionalismo. Pequim reivindica um “lugar de direito” entre potências, o qual chineses teriam ocupado até dois séculos atrás.

Na visão chinesa, Washington representa o principal obstáculo à expansão de sua influência, com a Ásia no centro da disputa, assim como uma ameaça ao próprio regime do Partido Comunista Chinês. Mas, há quatro décadas, chineses não acreditam que destruir o sistema de governo americano, ou a democracia ocidental, seja precondição para alcançar seus objetivos estratégicos.

O segundo traço distintivo da Guerra Fria relacionava-se à distribuição de poder no mundo, a qual era profundamente distinta da que temos hoje. Sobretudo em suas primeiras décadas, a Guerra Fria tinha uma estrutura clara: dois blocos ideológicos antagônicos, liderados por EUA e URSS, a se entreolhar à beira do precipício da guerra atômica (em outras palavras: a destruição da humanidade).

Juntos, o confronto ideológico e a bipolaridade sob armas nucleares resultavam na máxima de Raymond Aron: “Paz impossível, guerra improvável”.

Entre China e EUA hoje, a paz é absolutamente possível e a guerra total, ainda mais improvável.

A economia global, com enorme interdependência entre americanos e chineses, também mudou drasticamente. Os blocos capitalista e socialista comerciavam entre si, mas eram relativamente isolados. Hoje, é difícil dizer onde termina a economia americana e começa a chinesa: mais da metade dos aviões comerciais na China são fabricados pela Boeing, e o Starbucks planeja abrir uma loja a cada 15 horas em solo chinês até 2022.

Despido o mito da Nova Guerra Fria, o Brasil fica diante de um confronto por poder e influência entre seus dois maiores parceiros comerciais —com todos os problemas (e oportunidades) que ele enseja.

Alinhamentos automáticos perdem sentido. E os custos de uma visão de mundo divorciada da realidade tornam-se ainda mais evidentes.

As opiniões expressas acima não refletem necessariamente a posição do Council of the Americas.

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