Roberto Simon

É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard

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Roberto Simon

Luta bolsonarista contra 'campanha antibrasileira' é déjà vu dos anos 70

Objetivo em 2020 talvez não seja barrar críticas, que lhe oferecem inimigos externos e narrativa para mobilizar base

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Existe uma campanha internacional para destruir a imagem do Brasil. Ela é conduzida por brasileiros antipatrióticos, aliados a ONGs e agências multilaterais controladas por comunistas, jornais esquerdistas –seja The New York Times ou Le Monde– e governos hipócritas.

Contra esse cerco, é preciso mobilizar o Itamaraty e outras tropas do governo. A missão: propalar a verdade oficial, em nome da defesa da soberania.

Embaixadores em capitais mundo afora devem escrever notas de repúdio a críticas de governos, ou cartas furibundas a jornais que ousarem publicar denúncias contra o Brasil.

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, grava em Brasília discurso exibido na Assembleia Geral da ONU
O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, grava em Brasília discurso exibido na Assembleia Geral da ONU - Presidência do Brasil via AFP

Se embaixadas brasileiras na Europa amanhecerem pichadas, se celebridades americanas criticarem o governo, é preciso subir o tom ainda mais. Marqueteiros do Planalto devem elaborar uma estratégia de contra-ataque, agressiva, para mostrar o Brasil verdadeiro, da gente trabalhadora e patriota.

A mentalidade descrita acima embala a dita “nova diplomacia” da era Bolsonaro frente ao desastre ambiental. Mas ela também se aplica, inteiramente, ao Brasil dos anos 1970, quando a ditadura se lançou num esforço mundial contra as denúncias de tortura e outras violações.

Passei os últimos sete anos pesquisando arquivos brasileiros, latino-americanos e dos EUA para um livro sobre a política internacional da ditadura. Às vezes, parece que assisto a uma reencenação mal adaptada da tragédia narrada naqueles documentos amarelados.

Claro, há diferenças enormes –nada se iguala à tortura e ao desaparecimento forçado, e o Brasil de 2020 é (ainda) uma democracia.

Algumas cenas e papéis mudaram. Os dados sobre a ruína na Amazônia e no Pantanal vêm do Inpe ou da Nasa, obtidos por satélite. Quem revelava os crimes da ditadura no exterior eram organizações como a Frente Brasileira de Informações (FBI), uma colcha-de-retalho de exilados de vários matizes ideológicos, espalhados de Santiago a Argel, de Paris a Nova York.

Em vez do Greenpeace, a ONG bicho-papão era a Anistia Internacional. Em vez de Leonadro DiCaprio, a celebridade-vilã era Joan Baez. Em vez de conferências do clima, o Brasil era um pária no Tribunal Bertrand Russell, a “corte-cidadã” criada por grandes intelectuais da época.

No entanto, o chassi dos modelos 1970 e 2020 é praticamente idêntico. Primeiro, faz-se da mentira uma política de Estado. Certa vez, o embaixador da ditadura em Santiago, Antonio Cândido da Câmara Canto, protestou contra a “campanha antibrasileira” mostrando a dois ministros chilenos uma foto dos 40 presos políticos trocados pelo embaixador alemão.

“Eles parecem ter sido torturados?!”, questionou. No canto da foto, aparecia sentada Vera Sílvia Magalhães –com 37 quilos, ela não conseguia ficar em pé em razão das torturas que sofrera. A maioria na imagem tinha debaixo da roupa marcas de pau de arara e eletrochoques. Mas a tortura não existia no Brasil, assim como não há fogo, porque mata úmida não queima.

Segundo ponto: imersos numa fantasia conspirativa, os mandarins do governo acreditam, de verdade, que o problema de imagem do Brasil se combate com propaganda. Em 2019, o aumento anual de focos de calor na Amazônia foi de 30%, diz o Inpe. Em 2020, o fogo já consumiu 22% do bioma do Pantanal, diz a UFRJ.

Mas a prioridade deve ser o tuíte do DiCaprio ou o último relatório do governo francês. Como se as discussões sobre o problema fossem o problema em si.

Obviamente, não o são. O regime civil-militar só conseguiu o que queria, baixar a campanha de denúncia contra a tortura, quando ele parou de torturar seus inimigos. Não venceu no grito.

Agora, parceiros comerciais, investidores e a sociedade civil só mudarão de posição quando os fatos mostrarem que temos uma política ambiental séria.

Mas o que realmente quer o bolsonarismo? Talvez o objetivo em 2020 não seja realmente parar a “campanha antibrasileira”, que lhe oferece inimigos externos e uma narrativa para mobilizar sua base. A imagem do Brasil que fique para depois.

*

Em razão de novas aventuras profissionais, esta é minha última coluna na Folha. Foi uma honra e um prazer imensos ter espaço nessa tribuna tão importante à democracia brasileira, em meio a tempos tão difíceis. Ao jornal e aos leitores, muito obrigado.

As opiniões expressas acima não refletem necessariamente a posição do Council of the Americas.

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