Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

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Rodrigo Tavares
Descrição de chapéu Rússia

Já podemos fazer um balanço dos boicotes financeiros à Rússia?

Pressa em vender ativos russos tem prejudicado investidores estrangeiros e beneficiado compradores russos

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Investir, desinvestir; comprar, vender – este é o ato básico de qualquer investidor institucional, gestora de ativos ou investidor de retalho. Mais de 90 trilhões de dólares de ativos sob gestão são transacionados de acordo com rituais formatados em escolas de negócio. Um desinvestimento de um ativo financeiro demanda análise detalhada de analistas e gestores de portfólio. Nessa decisão, os números imperam, a matemática comanda, o algoritmo disciplina.

Funcionário da Bolsa de Valores de Nova York acompanha movimento de ações - Michael Nagle/Xinhua -19.mar.20

Mas, desde o século 19, também há um nicho de investidores que aplica filtros de exclusão com base em princípios éticos, morais ou religiosos. Os quakers não investiam em empresas de tabaco e os muçulmanos não aportam capital em empresas que produzem bebidas alcoólicas. Empresas dos EUA e da África do Sul foram alvo de desinvestimentos durante a guerra do Vietnã e o apartheid, respectivamente.

Mas quando investidores optam pelo caminho da moralidade, infelizmente encontram poucos pontos de orientação. E começam os atos falhos, as contradições e as controvérsias.

No momento anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia, investidores estrangeiros detinham cerca de US$ 300 bilhões em ativos russos. A pressão do mercado, da mídia, das sanções, dos clientes provocou um maremoto de desinvestimentos.

Mas as contradições são difíceis de disfarçar. Muitos dos investidores que desinvestiram da Rússia mantêm investimentos em países que praticam atos hostis contra outras nações, violam sistematicamente os direitos humanos ou são alvos de sanções internacionais. Quantos investidores americanos, britânicos, canadenses ou holandeses desinvestiram de ativos chineses quando os seus parlamentos formalmente acusaram a China de "genocídio" contra o povo Uyghur na província de Xinjiang? A régua da moralidade tem várias medidas.

E porque investidores não desinvestiram da Rússia quando anexou unilateralmente a Crimeia em 2014, quando patrocinou a chacina na praça de Maidan em Kiev no mesmo ano, quando envenenou opositores políticos ou quando os seus mercenários cometeram atrocidades no Mali ou na República Centro Africana?

O PRI, a principal organização dedicada ao investimento responsável, não recomenda que os investidores que se motivem por princípios morais ou éticos desinvestam os seus ativos. Ao invés disso, determina que devem se engajar de forma sistemática e eficiente com as empresas do portfólio para influenciar mudanças positivas. Isso pode ser feito de forma individual ou coletiva, através do engajamento direito, do voto ou de resoluções de acionistas.

Por quê? Porque quem desinveste por razões morais tem, por definição, que vender o ativo a alguém. E esse comprador quase não é motivado por princípios morais ou éticos, caso contrário não estaria interessado em comprá-lo. A pressa com que investidores ocidentais estão a vender os seus ativos russos e a redução no número de possíveis compradores têm gerado um clima de xepa nos mercados, onde os clientes são russos ou oriundos de nações menos sensíveis a códigos de conduta e ao Estado de Direito. Por motivações morais, investidores ocidentais vendem ao desbarato ativos a investidores imorais. A ética alimenta a falta dela.

O banco francês Société Générale vendeu os seus ativos a um dos poucos oligarcas russos que passou pelos pingos da chuva das sanções, Vladimir Potanin. A Renault vendeu os seus 68% na montadora Avtovaz ao Estado russo por 1 rublo. Perdeu €2.2 bilhões. A lista de empresas ocidentais que vende ativos locais a empresas russas por preços meramente simbólicos cresce a cada dia. São transações que favorecem os compradores russos porque compram bons ativos a preço de água da chuva para os venderem mais tarde a preço de água artesiana de nascente.

A forma atropelada com que se fizeram anúncios de boicote não acautelou as dificuldades inerentes ao próprio ato. Vender ativos russos não é tecnicamente fácil e não só pela escassez de compradores. A bolsa de valores de Moscovo esteve mais de um mês fechada e o banco central da Rússia tem condicionado a venda de ações russas por não residentes. Além disso, muitos investidores estão expostos a ativos russos por intermédio de índices de ações, compostos por várias empresas (de dezenas de países, incluindo a Rússia), que são moldados segundos critérios pré-estabelecidos. Um investidor não pode simplesmente eliminar as ações russas de um índice, sendo essa uma incumbência de quem é responsável pelo próprio índice.

Em termos práticos, o boicote financeiro de investidores funcionou? Se o indicador de sucesso for o término da guerra, o abrandamento da matança ou a deposição de Vladimir Putin, então o esforço global de desinvestimentos falhou, pelo menos até ao momento.

Por isso, muitos investidores ocidentais aguardam impacientes na fronteira da oportunidade para reentrarem discretamente no mercado russo. Um dia sem estilhaços de bombas, o primeiro grupo de refugiados ucranianos que regresse a casa ou a visita de um líder ocidental ao Kremlin servirão de brechas para que investidores consigam justificar moralmente a imoralidade do regresso à Rússia, mesmo que a paz, nessa altura, possa ser da mesma qualidade da democracia do país invasor. E ao voltarem ao país recomprarão ativos que foram vendidos há poucos meses.

O mercado global ESG também falhou porque não apresentou orientações a investidores. Agências internacionais, plataformas colaborativas, associações industriais, organizações de classe ou reguladores não foram lestas a apresentar recomendações sobre o que fazer. Se um pequeno fundo quiser investir em agricultura sustentável na Nigéria, existem dezenas de guias sobre esse setor e essa prática – ou sobre todas as outras no mundo da sustentabilidade. Mas para orientar o maior movimento global de desinvestimento ESG na história do mercado financeiro, predominou o silêncio.

Se um investidor é guiado por motivações éticas e tem como propósito não investir em ativos de países que violem os direitos humanos ou participam de guerras, esses princípios têm que estar tricotados na cultura do investidor, na sua tese de investimentos, nos seus KPIs de sucesso, na forma como comunica ao mercado. É algo transversal e processual à organização. Se estas métricas forem monitoradas regularmente, dificilmente um investidor será pego desprevenido. Não precisa reagir.

A pressa em vender ativos russos por razões morais já é um indicador que o investidor não era verdadeiramente guiado por princípios morais.

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