O aço é o esqueleto que suporta as sociedades modernas. Produzido pela primeira vez em meados do século 19, é mais resistente do que o ferro fundido e pode ser produzido em grandes quantidades, o que motivou a sua ampla utilização industrial. Ao longo dos anos, incentivou profundas mudanças políticas, sociais e econômicas. Sem aço não teríamos tido a Segunda Revolução Industrial ou a Revolução Meiji no Japão. Brasília não teria passado de um rascunho de Lúcio Costa e São Paulo acabaria como centro comercial agrícola.
O livro de Heróis e Heroínas da Pátria, que homenageia personagens fundamentais para a construção da história brasileira, é conhecido como o "Livro de Aço."
Mas a produção de aço tornou-se um problema. Atualmente, essa indústria global de US$ 2,5 trilhões é responsável por 8% das emissões de gases de efeito estufa. Ainda que seja um material 100% reciclável e que pode ser reciclado infinitas vezes sem perder qualidade, a produção de aço é danosa para o meio ambiente e para as comunidades vicinais às grandes usinas industriais.
A solução está na ciência e na tecnologia, mais uma vez. A indústria siderúrgica tem desenvolvido várias estratégias para se tornar "verde", como o uso de hidrogênio verde em substituição do carvão, a utilização de carvão vegetal em substituição do carvão mineral, ou soluções de sequestro de carbono. Por exemplo, em 2022 três empresas suecas (SSAB, LKAB e Vanttenfall) foram as primeiras a produzir aço sem o recurso a combustíveis fósseis, recorrendo a hidrogênio verde.
Mas estas tecnologias têm as suas limitações. Por exemplo, o uso de hidrogênio verde demanda que a matéria-prima seja um minério de ferro de alto teor de pureza (com menos de 3.5% de impurezas), o que corresponde a apenas cerca de 20% de todo o minério de ferro disponível no mercado atualmente.
A produção de "aço verde" é fundamental para assegurar a transição para uma economia de baixo carbono. Por isso, tem ganhado destaque na comunidade científica e industrial a Boston Metal, uma empresa spin-off do MIT nos EUA, que inventou uma solução conhecida como MOE –Molten Oxide Electrolysis, ou eletrólise de óxido fundido–, que consiste no uso de eletricidade para transformar metais em forma bruta em produtos de metal fundido de alta pureza
Em vez de gás carbônico, o subproduto é oxigênio.
A empresa já foi elogiada pelo secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, e é apoiada financeiramente por um fundo que tem capital de Bill Gates. Se o século 19 foi construído com ferro e o século 20 com aço, poderá a segunda meta do século 21 ser erguida com "aço verde"?
O processo científico da Boston Metal não é isento de dúvidas e questionamentos, dado o seu caráter ainda pré-industrial. A coluna conversou por email com Tadeu Carneiro, CEO da Boston Metal, sobre as dificuldades em criar "aço verde". A entrevista foi realizada no âmbito da campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência, uma iniciativa do Instituto Serrapilheira.
Se a Boston Metal foi fundada em 2012, por que está demorando algum tempo para ter as primeiras células industriais ou semi-industriais e dar início à comercialização da tecnologia?
Os primeiros seis anos da companhia foram dedicados a explorar a tecnologia para diferentes sistemas metálicos. Nesse período inicial, a companhia contava com seis funcionários que desenvolveram a primeira célula piloto e fizeram a primeira expansão da célula eletrolítica, saindo da célula de bancada desenvolvida no MIT. A partir de 2017, a companhia concentrou seus esforços no desenvolvimento da tecnologia para a fabricação de ferro ligas de alto valor agregado e para a fabricação de aço. Desde então a companhia cresceu de seis para os atuais 90 funcionários e obteve duas rodadas adicionais de financiamento de sucesso.
Como garantir que a tecnologia da Boston Metal possibilita a produção de aço 100% verde se a MOE implica o uso de eletricidade? Como garantir que a eletricidade não é gerada com combustíveis fósseis?
O aço produzido com a tecnologia da Boston Metal só será 100% verde se a eletricidade for verde. O mesmo acontecendo para o hidrogênio verde. Só será verde se a eletricidade for verde.
Além de ser responsável por uma parte significativa das emissões globais de CO2, a produção de aço também é responsável por quantidades significativas de águas residuais contaminadas e outros resíduos sólidos perigosos. A tecnologia da Boston Metal também contribuirá para a diminuição dessas outras externalidades negativas, além de CO2?
Com certeza. O processo da Boston Metal não utiliza água em nenhuma das etapas e permite que metais de valor sejam extraídos de rejeitos industriais e de mineração. Na fabricação de aço, o gás de exaustão das células será o oxigênio, que deverá ser recuperado como subproduto do processo. O excesso de eletrólito proveniente das impurezas do minério de ferro é completamente inerte e poderá ser usado como material de construção.
A tecnologia MOE pode ser usada em usinas atualmente em funcionamento (altos-fornos a carvão mineral ou fornos elétricos a sucata de aço)? Ou terão que ser construídas novas plantas?
A tecnologia MOE substituirá toda a etapa inicial de fabricação de aço. As células eletrolíticas da tecnologia da Boston Metal serão construídas no lugar do conjunto que compreende o pátio de carvão, a coqueria, a sinterização e/ou peletização do minério de ferro, o alto-forno, os carros torpedo que transportam o ferro gusa e o forno BOF que reduz a quantidade de carbono do ferro gusa. Uma bateria de células eletrolíticas substituirá toda essa instalação. O aço obtido das células será muito mais puro e seguirá no processo de fabricação normal da usina integrada, sendo transferido para a metalurgia de panela, lingotamento contínuo e todo o processo que segue na fabricação dos produtos finais de aço.
O processo não substitui os fornos elétricos de fusão de sucata. Mas o ferro obtido com o processo da Boston Metal complementará a quantidade de sucata que é limitada no mercado. Além disso, o produto do processo MOE é puro e, portanto, servirá para diluir eventuais contaminações encontradas nas sucatas que são refundidas nos fornos elétricos atuais.
Contudo, as implementações mais disruptivas da tecnologia acontecerão com a adoção da mesma pelos fornecedores de minério de ferro. Com a implantação de energia verde nas minas de minério de ferro os fornecedores de minério poderão utilizar a tecnologia para vender um produto metálico ao invés de comercializar minério de ferro. Aumentarão o valor agregado de seu produto e transportarão 40% a menos em massa. Além disso, poderão processar o material de suas barragens de rejeito para a recuperação do ferro contido naquele material.
Além de aço, que outros metais a Boston Metal poderá ajudar a produzir de forma limpa e eficiente? Qual a relevância desses outros metais?
A tecnologia pode ser ajustada para reduzir a grande maioria dos óxidos metálicos. Para tanto o eletrólito das células devem ser escolhidos de acordo com o metal a ser produzido. Titânio, terras raras, cromo, molibdênio, nióbio, tântalo, níquel e cobre são exemplos de outros metais de grande relevância para o futuro sustentável do planeta e que podem ser produzidos com a utilização da tecnologia da Boston Metal.
Que outras tecnologias e descobertas científicas em nível global competem diretamente com a MOE?
Por utilizar temperaturas elevadas, em que tanto matéria-prima quanto produtos estarão em estado líquido, e por poder utilizar matérias-primas com teores reduzidos de óxidos do metal pretendido em sua composição química, o processo é único em termos de expansão de capacidade de produção. Além disso, é um processo modular que permite ser usado em diferentes escalas de produção e em segmentos de maior valor agregado. No caso específico da produção de aço, o processo da Boston Metal é o único capaz de resolver o problema de emissão de CO2 para todos os tipos de minério de ferro do mercado como mencionei anteriormente.
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