É bom nos acostumarmos com o que aconteceu na Bolívia: golpes de Estado sem golpistas. Na história da América Latina, a regra sempre foi clara: a queda de um presidente é causada por alguém ou alguma instituição, como as Forças Armadas, articulando para tomar o poder.
Mas o exemplo boliviano é um dos caminhos abertos pelas grandes movimentações populares bottom-up (de baixo para cima): o golpe sem golpistas.
Os casos da Tunísia, da França, da Bolívia, do Chile e de Hong Kong são emblemáticos. Assim como nas manifestações brasileiras de 2013, as principais demandas começaram mais ou menos específicas, mas rapidamente explodiram para pedir a renúncia dos chefes de Estado.
Os tunisianos conseguiram as eleições que queriam, Macron e Piñera conseguiram sobreviver e se manter no poder, Carrie Lam é hoje uma chefe de Estado zumbi, e Evo Morales não conseguiu resistir.
Em todos os casos há uma coisa em comum: ninguém por trás, inicialmente, tramando para chegar ao poder. Na América Latina, nossa paranoia, cheia de razão, não permite que esse resultado de manifestações seja tido como natural.
Mas são três as razões para que isso fique mais comum. Primeiro, o avanço tecnológico tem permitido mobilizações gigantescas, com custos organizacionais baixos e decrescentes. Segundo, as vozes mais extremas têm ganhado participação desproporcional no discurso contemporâneo. Terceiro, do ponto de vista individual, pode fazer sentido a escolha por uma solução extrema, mesmo sem alinhamento ideológico.
A relação entre mudanças tecnológicas e facilidade de organização é evidente, desde fake news via WhatsApp até mobilizações relâmpago via Twitter ou grupos de Facebook.
No caso dos extremos ideológicos, quanto mais barulho um grupo fizer, maior o peso de suas opiniões sobre a formação de políticas públicas, seja o grupo representativo ou não.
Como exemplo, a maioria dos europeus é indiferente ao consumo de alimentos geneticamente modificados, mas uma minoria organizada conseguiu que a sua importação fosse proibida. Por aqui, até tresloucados contra vacinação e que acreditam numa terra plana ganham espaço.
Do ponto de vista individual, para alguém pobre, a altíssima variância pode ser escolha racional. Ou seja, se há dois oponentes, um moderado, com políticas calculadas para melhorar o país, e outro alucinado, prometendo mundos e fundos e com baixíssima credibilidade, pode fazer sentido votar no segundo, mesmo com pouquíssima chance de que suas promessas sejam cumpridas.
É como jogar numa loteria política: a chance de o político ser bom é uma em milhões, mas, ferrado, ferrado e meio.
Esse terceiro fator também modera o argumento de que a votação na extrema direita significa que os brasileiros compartilham os valores medievais do atual governo. Não é necessariamente verdade. O governo pode ter sido escolhido em parte por suas promessas irreais.
Outra dificuldade de análise é que as manifestações são multidimensionais. Ainda, a derrubada de um chefe de Estado via grupos populares traz à tona uma nova figura, a do aproveitador. Essa seria a pessoa, ou grupo, que enxerga o vácuo de poder e se coloca como nova autoridade.
Pode ser que o primeiro aproveitador (no caso boliviano, a senadora Añez) não consiga, e que haja uma porta giratória até que alguém se estabilize no poder. Mas esse padrão de queda de governo via mobilização social é claro, para o bem e para o mal. E vai ficar mais comum.
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